Como desenhar o câncer com humor: uma conversa com Miguel Gallardo

O ilustrador espanhol apresenta uma nova história em quadrinhos em que narra seu tumor cerebral
"A matéria de que são feitas as boas histórias são nossa própria vida e as vidas de nossos familiares e amigos". Miguel Gallardo (@gallardo), cartunista e ilustrador de publicações como La Vanguardia, The New Yorker, The New York Times e Washington Post, já havia nos explicado essa importante premissa em seu curso na Domestika, Narrar em vinhetas com uma esferográfica.
De fato, um dos principais motivos pelos quais já o admirávamos tanto era sua incrível capacidade de captar, com sensibilidade e lucidez, postais de sua vida. Seus livros María y yo e María cumple 20 años, que mostram a linguagem terna que soube construir para se comunicar com sua filha autista, são um perfeito exemplo disso.
Agora, em seu novo trabalho, Algo extraño me pasó camino de casa, Miguel leva ao máximo seu dom de transformar a vida em arte e narra, com naturalidade e assombro, o processo em que descobriu que tinha um tumor no cérebro, que deveriam operá-lo e que teria que realizar um tratamento que, provavelmente, traria algumas mudanças em sua vida. Poderia voltar a desenhar? Como conseguiria?
Conversamos com ele sobre como é desenhar o próprio câncer.


“Quando você diz câncer, quando diz tumor e quando diz cérebro, as pessoas dão um passo para trás. É muito forte. A combinação dá um medo incrível. Ilustrar todo esse processo foi uma forma de explicar para mim e, depois, explicar para os outros”, descreve.
E isso é exatamente Algo extraño me pasó camino de casa, uma explicação, uma reconstrução e, finalmente, uma ressignificação da história de sua doença desde o início, quando se descobriu sem saber usar o computador, caminhando desequilibrado para a esquerda e pondo refrigerante na paella.
Naquele momento, Miguel não sabia o que acontecia com ele, nem encontrava nada que o inspirasse a desenhar. No entanto, tudo fez sentido quando, uma vez passados o diagnóstico e a operação, acordou na cama no hospital de Sant Pau, em Barcelona, e descobriu que seu mecanismo de cura mais poderoso, o desenho, havia saído intacto da sala de cirurgia.
“A primeira coisa que fiz quando acordei foi pegar a esferográfica. Tinha levado vários exemplares do meu livro María y yo para os médicos e me dei conta de que poderia autografá-los. Aí fiquei tranquilo. Soube que, enquanto pudesse fazer isso, meu processo de cura estava em andamento"

No entanto, nos dias seguintes à operação no hospital, Miguel não desenhou: dedicou-se a pensar. “Tive longas noites de insônia que foram muito produtivas porque, sem querer, na minha cabeça a coisa já começou a tomar forma, eu entendi do que se tratava.
Justo Fnac havia me encomendado um livro de ilustração inspirado em contos de Patricia Highsmith e havia um que me lembrava muito de mim. Era a história de um homem que escrevia romances perfeitos em sua cabeça mas, quando tinha que passá-los para o papel, não conseguia, porque já os tinha escrito com tanta perfeição que estava farto deles!", descreve, entre risos. "Quando cheguei em casa, apenas tive que me apressar para capturar tudo o que havia pensado", explica. (N da R: Un extraño asesinato y otras historias, o livro inspirado nestes contos, foi publicado há algumas semanas).
Em plena volta para casa, à particularidade de sua situação pessoal, somou-se a particularidade global: a pandemia foi declarada e, no final, as restrições de sair pouco e ficar quieto que os médicos haviam lhe dado, acabaram sendo universais. Todos os eventos, aulas e conferências em todo o mundo que Miguel teve que suspender, teriam sido suspensos de qualquer maneira. Isso trouxe uma estranha calma que o ilustrador, mais uma vez, conseguiu fazer jogar a seu favor.

Nesse congelamento das atividades planetárias, Miguel logo organizou uma rotina repleta de novos rituais que, segundo ele, antes não sabia valorizar tanto. De repente, acordar às seis da manhã e passear com sua cadela Cala, resgatada de uma montanha há um ano, começou a parecer "um grande plano", assim como comprar no armazém do bairro o sanduíche de queijo dinamarquês, tomate seco e marmelo que adora. Após esses pequenos passos de felicidade tão importantes no processo criativo, Miguel se dedicava a pôr música, deitar no sofá e, mesmo cansado, trabalhar.
O que diria aos ilustradores que, com muito menos vicissitudes, têm dificuldade em pegar a caneta ou o computador? “Eu comparo com esse primeiro passo que é entrar no mar, quando você quer, mas parece frio e incômodo. Então você simplesmente mergulha e está lá, aproveitando. O importante é, aconteça o que acontecer, dar esse passo. Esse é o início de qualquer criação e de qualquer cura".

Versão em português, por @ntams.
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