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Carolina Maria de Jesus: da favela a escritora de sucesso

Conheça a vida e a obra de um dos grandes nomes da literatura brasileira, "Carolina Maria, a poetisa negra"
A literatura brasileira é repleta de grandes autoras: Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Conceição Evaristo, Cora Coralina, Ana Martins Marques, Adélia Prado... são muitos os nomes de destaque, tanto no Brasil quanto no exterior.
Poucas obras, no entanto, são tão belas e singulares quanto a da mineira Carolina Maria de Jesus. Na sequência, apresentamos a vida e obra desta autora que retratou a luta diária contra a miséria, combinando crueza e lirismo em mais de seis mil páginas manuscritas.

As origens de Carolina Maria de Jesus
Carolina Maria de Jesus nasceu em 1914, na cidade de Sacramento, interior de Minas Gerais. Filha de pais analfabetos, frequentou a escola por apenas dois anos, tempo suficiente para que aprendesse a ler e escrever e, principalmente, se apaixonasse pelas letras.
Em meados da década de 40, após a morte da mãe e em busca de uma vida melhor, Carolina mudou-se para São Paulo com sua primeira filha. Inicialmente, viveu em cortiços e pensões do centro da capital paulista.
Trabalhava como doméstica. Por ser mãe solteira de três crianças, as oportunidades se tornaram cada vez mais escassas e Carolina passou a catar papel para sobreviver.

Em 1947, numa situação econômica bastante precária, muda-se para a favela do Canindé, uma das primeiras de São Paulo, e ergueu sozinha o próprio barraco.
Sobre a época, uma de suas filhas, Vera Eunice, declarou num documentário produzido pela TV Brasil: “Nunca tivemos móveis. [Os móveis] eram caixotes, as canecas eram feitas de lata de molho de tomate e os pratos de lata de goiabada”.
''Quando eu não tinha nada pra comer, eu escrevia.'' - Carolina Maria de Jesus
Ainda assim, em meio à pobreza e à luta incessante contra a fome, Carolina encontrava tempo e disposição para escrever.

A "descoberta" da escritora por Audálio Dantas
A vida de Carolina mudou em 1958, quando um jornalista, Audálio Dantas, visitou a favela do Canindé para escrever uma reportagem para o jornal Folha da Noite.
Conforme Audálio, já falecido, contava, ele "olhava uns marmanjos brincando no playground quando apareceu uma mulher esculachando, dizendo que se eles não caíssem fora, ia botá-los no seu livro”.
O jornalista quis saber de que livro se tratava. Carolina, que desde os anos 40 enviava textos para editoras e jornais e se apresentava como “Carolina Maria, a poetisa negra”, aproveitou a oportunidade e mostrou alguns de seus cadernos registrando o cotidiano da favela.
Ao deparar-se com os diários da escritora, Audálio encantou-se: “O texto tinha uma forma de narrar muito próxima da poesia”, disse certa vez. O repórter desistiu de escrever sua matéria e, em seu lugar, o jornal publicou trechos da escritora.

O fenômeno editorial
Embora tenha praticado muitos gêneros (romance, poesia, teatro, provérbio, autobiografia, contos), foram os diários que tornaram Carolina conhecida.
Apenas dois anos depois da publicação dos trechos na Folha da Noite, ela lançaria pela editora Francisco Alves sua obra mais conhecida e celebrada até hoje, Quarto de Despejo, uma compilação de seus diários, editada por Audálio Dantas.
“A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro.” - Carolina Maria de Jesus
A escrita singular de Carolina, capaz de retratar a miséria e a fome com crueza e, ao mesmo tempo, construir imagens e observações poéticas, cativou a cena literária.
A primeira tiragem de Quarto de Despejo, de 30 mil exemplares, logo sumiu das prateleiras. Já no primeiro ano, ela havia vendido 80 mil livros e sido traduzida para 14 línguas, em 20 países diferentes.

Casa de Alvenaria e ostracismo
Com o dinheiro dos direitos autorais, Carolina realizou o sonho de deixar a favela e mudou-se para um sobrado num bairro de classe média, Santana. Apesar do sucesso e da fama, não foi bem recebida pelos vizinhos.
"Tenho a impressão que lutei numa guerra. Tudo está confuso para mim. Eu pensava que a vida na casa de alvenaria ia ser aveludada. Enganei. É árdua, cheia de contrastes e confrontos. Os confrontos com as desilusões e aborrecimentos." - Carolina Maria de Jesus
No mesmo período, não muda apenas de endereço; sua obra também se altera. Em seus diários, passa a escrever sobre a tão sonhada casa de alvenaria (que empresta nome ao diário publicado em 1961), as viagens para promover sua obra e o imenso esforço de superar o racismo e ser reconhecida como escritora.

Apesar da evidente qualidade literária, a mudança temática fez com que o mercado literário a rejeitasse. Em 1963, ainda lançaria duas obras solenemente ignoradas pelo público e pela crítica: Pedaços de Fome e Provérbios.
Últimos anos de Carolina Maria de Jesus
Já em dificuldade financeira, a escritora adquiriu um pequeno sítio em Parelheiros, na Zona Sul de São Paulo. Com o tempo, voltaria a catar papel para sobreviver, mas sem nunca abandonar a escrita — prova disso são as seis mil páginas manuscritas, boa parte inédita, que legou à nossa cultura.
Carolina faleceu aos 59 anos, em 1977. Em seu túmulo está gravado um trecho do poema Sonhei, de sua antologia pessoal, que sintetiza a importância da literatura em sua vida.
"Sonhei que estava morta
Vi um corpo no caixão
Em vez de flores eram livros
Que estavam nas minhas mãos" - Carolina Maria de Jesus

Nos últimos anos, graças ao esforço de intelectuais e pesquisadores, sua obra passou por uma redescoberta, voltando a ser lida e discutida.
Carolina foi, por exemplo, tema de uma exposição no prestigiado Instituto Moreira Salles e recebeu o título de doutora honoris causa da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Já leu as obras de Carolina Maria de Jesus? Deixe sua favorita nos comentários!
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