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Por que Clarice Lispector se tornou um ícone da internet?
Descubra como a escritora mais misteriosa e controversa da literatura brasileira se tornou cultura pop
Você pode nunca ter lido um livro, conto ou crônica desta escritora, mas conhece seu nome. Clarice. Basta o primeiro nome para que, numa conversa de bar, todos saibam de quem se trata. A escritora, jornalista, contista e ensaísta, nascida na Ucrânia em 1920 e criada no Brasil, é um ícone literário inquestionável e dominou a internet brasileira através de memes no início dos anos 2000. Na verdade, domina até hoje.
Numa breve pesquisa no Instagram, é possível achar pelo menos uma dezena de perfis, com milhares de seguidores, dedicados a compartilhar frases da autora. Apenas um deles é oficial, gerenciado pela Editora Rocco, responsável pelas publicações de Clarice no Brasil.
A hashtag com seu nome, #claricelispector, reúne mais de 371 mil citações e a maior parte delas não é de frases de Clarice. Num grupo de Facebook intitulado Clarice Lispector, mais de 120 mil pessoas se reúnem para compartilhar memes, frases, curiosidades e novidades sobre sua obra.
Os memes
Autora de 18 livros, entre romances, contos e crônicas, Clarice Lispector se tornou sinônimo de intelectualidade, auto-ajuda e frases intimistas e existenciais. A redescoberta de suas obras no início dos anos 2000 inundou redes sociais com frases compartilhadas como reflexão. Em muitos casos, as frases não eram suas. Mas aí morava a piada: qualquer frase existencialista poderia ser de Clarice.
Dessa forma surgiram os memes com fotos de Clarice, em preto e branco, que constroem um alter ego em torno da figura misteriosa da autora através de alguma frase mal-humorada ou ácida.
Essa atração não é necessariamente nova e não surgiu com a internet. Em entrevista ao El País, Benjamin Moser, pesquisador e escritor da biografia Clarice, diz que o mistério da vida pessoal da escritora alimentou os interesses em torno dela.
"Quando você olha a vida dos artistas, entende que o trabalho é resultado de suas experiências. Mas o culto à figura de Lispector no Brasil ofuscava isso, seu mistério foi prejudicial, tinha fama de louca. A verdade é que você quer saber mais porque ela é muito magnética e sua figura inspira muita gente. Em 15 anos ela passou de refugiada, como milhões de sírios hoje, para se tornar em uma lendária dama do Rio", diz.
Num trecho da biografia que escreveu, Moser diz ainda:
"Quando morreu, em 1977, Clarice Lispector era uma das figuras míticas do Brasil, a Esfinge do Rio de Janeiro, uma mulher que fascinava os brasileiros praticamente desde a adolescência. 'Ao vê-la, levei um choque', disse o poeta Ferreira Gullar, relembrando o primeiro encontro entre os dois. 'Seus olhos amendoados e verdes, as maçãs do rosto salientes, ela parecia uma loba — uma loba fascinante. [...]Imaginei que, se voltasse a vê-la, iria me apaixonar por ela.' 'Há homens que nem em dez anos me esqueceram', admitiu Clarice. 'Há o poeta americano que ameaçou suicidar-se porque eu não correspondia...'. O tradutor Gregory Rabassa recordava ter ficado 'pasmo ao encontrar aquela pessoa rara, que era parecida com Marlene Dietrich e escrevia como Virginia
Woolf'."
Esse misticismo e adoração elevaram Clarice e sua obra, ainda que muitos não a tenham lido, a ícones da cultura pop. E isso aconteceu, especialmente, por culpa dos memes e sua fácil disseminação.
"A gente pode dizer que os memes são, primeiro, fruto de uma cultura popular de internet e fruto da cultura da participação. Porque os memes são veículos de transmissão de ideias, que podem ser imagens, textos, vídeos, gifs e só circulam por causa dos internautas e da atividade das pessoas na rede. A característica principal dos memes é ser um conteúdo gerado pelo próprio usuário, por conta da dinâmica da cultura da participação em que é muito fácil produzir algo, editar uma foto e distribuir esse material. Um meme sempre depende de alguns fatores: apropriação, distribuição e transformação", diz Issaaf Karhawi, doutora em Ciências da Comunicação (PPGCOM-ECA-USP) e pesquisadora digital.
A influência de Clarice
Apropriação, distribuição e transformação são as principais características de toda a produção nas redes sociais em torno da figura de Clarice. Além disso, segundo levantamento da UNESCO de 2012, a escritora brasileira é a mais traduzida do mundo com 113 traduções.
Para Marília Librandi, doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), em entrevista à BBC, "Clarice atinge o âmago das questões humanas e extra-humanas. Sua obra é continuamente moderna e atual. Hoje, ela é parte do cânone da literatura mundial. Não há mais como ignorá-la".
A influência de Clarice, mesmo depois de 44 anos de sua morte, é vasta e continuará inspirando e estimulando conversas online, papos entre amigos e fãs e postagens nas redes sociais. Como bem complementa Benjamin Moser no livro Clarice, uma biografia:
"No Brasil de hoje seu rosto sedutor adorna selos postais. Seu nome empresta classe a condomínios de luxo. Suas obras, muitas vezes rejeitadas como herméticas ou incompreensíveis quando ela era viva, são vendidas em distribuidores automáticos em estações de metrô. Na internet fervilham centenas de milhares de fãs, e é raro passar um mês sem que surja um livro examinando um ou outro aspecto de sua vida e obra."
Você pode nunca ter lido um livro, conto ou crônica de Clarice. Mas, com certeza, conhece seu nome e seu rosto.
Referências:
Moser, Benjamin. Clarice, uma biografia / Benjamin Moser ; tradução José Geraldo Couto — 1a - ed. — São Paulo : Companhia das Letras, 2017.
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