6 marcos essenciais da história das tintas
Das pinturas rupestres à tinta biológica, relembre inovações que permitiram à humanidade expressar sua arte e engenho
Entre as muitas coisas que nos caracterizam como seres humanos, destacam-se a habilidade de refletir sobre o mundo, filosofar sobre nossa condição, ter pensamento abstrato e criar.
E uma parte nada desprezível das reflexões de milhões e milhões de humanos que viveram desde os primórdios da nossa espécie se materializou em desenhos e pinturas.
Nada mais lógico que a humanidade buscasse formas cada vez melhores de gravar sua arte e seu engenho.

Nascidas a partir de amálgamas de minérios e fluidos como sangue, urina e sumos de plantas, as tintas percorreram um longuíssimo caminho até chegar às formulações biológicas que, hoje em dia, já permitem a impressão de córneas e outros órgãos em impressoras 3D.
Neste texto, reunimos seis marcos dessa história, nos quais fica evidente a capacidade aparentemente sem limites da nossa espécie para inventar maneiras de deixar registrado um legado.
1. Como pintar uma caverna
Folhas de plantas maceradas a deixar um color esverdeado no solo; o sangue vermelho que mancha aquilo que toca; o carvão dos galhos queimados e seu rastro negro. É fácil imaginar de onde nossos antepassados pré-históricos tiraram a inspiração para os primeiros pigmentos.

Quando puderam, enfim, começar a deixar gravados seus pensamentos e observações do mundo ao redor nas paredes das cavernas em que viviam e praticavam seus rituais – o que um grupo de cientistas australianos e indonésios disse ter ocorrido há 44 mil anos, nas ilhas Celebes, na Indonésia –, esses protoartistas só precisaram de uma base para fixar as cores.
A seiva pegajosa das árvores, a urina, o barro e até fezes e sangue humanos e de animais foram empregados nas pinturas rupestres, mostram estudos científicos. Parece uma mistura frágil e delével. Mas não nos esqueçamos de que muitas dessas cavernas, frias, escuras e secas, eram o entorno perfeito para a conservação desses registros.

Até que o surgimento da indústria turística, a partir do século XIX, começou a ameaçar esse patrimônio: com a circulação sem precedentes de pessoas por cavernas isoladas ao longo de milhares de anos, fungos e vandalismo puseram em risco sítios históricos como Lascaux, na França, e Altamira, na Espanha, hoje com acesso restrito e estrito monitoramento científico.
2. Egito e China, impérios em cores
Se há duas civilizações que alcançaram antes que as demais o esplendor do manejo de pigmentos, essas foram o Egito e a China antigos.
Templos egípcios ricamente decorados com um festival de cores – e que resistiram às intempéries e ao passo de milhares de anos – e o legado artístico chinês que remonta à Dinastia Zhou (1066-221 antes da era comum) dão fé disso.

Entre a pré-história nas cavernas e essas avançadas civilizações, difundiu-se o uso de minerais para a extração de cores variadas. Sumérios, babilônios e egípcios, por exemplo, usavam o tetróxido de chumbo, bastante tóxico, para obter a cor vermelha. Misturas de diferentes minérios de cobre davam em amarelo, o calcário era usado para obter o branco; e o carvão e a pirolusita, o óxido de manganês retirado do deserto, para o negro.
Mas nenhum povo antes do egípcio conseguiu sintetizar o azul. Um estudo da Universidade de Cantábria, na Espanha, mostrou que essa cor foi registrada pela primeira vez por volta de 3.600 a.C., naquela civilização, obtida de carbonato de cobre, que se degrada em malaquita verde mas que os egípcios conseguiram manter estável num azul intenso usando pó de lapislázuli e areia, elemento abundante no Saara.

Difícil saber se o grande esforço empregado na busca da cor se deve ao seu significado na cosmologia egípcia (fertilidade, renascimento, permanência) ou se foi o contrário. O fato é que o azul foi monopólio da arte desse povo por séculos.
Diferentemente dos egípcios, os chineses se especializaram num pigmento abundante desde a pré-história, mas transformado por eles numa das tintas mais versáteis e duradouras: o nanquim. Feito de fuligem e goma-laca (uma resina secretada pela larva do inseto Kerria Lacca, parente da cigarra abundante no Sudeste Asiático), o nanquim era usado para decorar não só os famosos pergaminhos artísticos e pinturas em papel xuan mas, também, objetos e até templos e palácios.

Em sofisticadas oficinas de produção artística aprimoradas ao longo das diferentes dinastias que unificaram e dominaram o país, artesãos fizeram experimentos que derivaram em pigmentos variados.
O azul chinês (conhecido como Azul Han) veio da calcinação de uma mistura de sílica, óxidos de cobre e sais de bário; para o vermelho, uma junção de hematita e calcita; o rosa e o laranja vinham de um tratamento químico realizado com o ouro. E, além da goma-laca, outros elementos usados para diluir e fixar as cores eram a clara de ovo e seivas vegetais.
3. O púrpura romano, privilégio dos Césares
Os registros mais antigos de tons de roxo ou púrpura em pinturas remontam à pré-história. A caverna de Pech Merle e outros sítios neolíticos da atual França têm fragmentos dessa tinta obtidos de manganês e pó de hematita misturados a clara de ovo e outras bases líquidas em registros rupestres que, segundo a datação científica, foram produzidos entre 27 mil e 18 mil anos atrás.
Mas não foi senão durante o Império Romano que o roxo alcançou seu esplendor como signo de nobreza, magia, mistério e conexão com o divino, que se manteve pelos séculos vindouros.

Segundo historiadores, uma das razões para isso era a dificuldade extrema para a obtenção do mais vívido púrpura que se conhecia então: o roxo imperial, também conhecido como púrpura de Tiro, extraído de uma secreção de pequenos moluscos das espécies Murex brandaris, Bolinus brandaris e Stramonita haemastoma.
Diferentemente do pigmento obtido de minérios, o roxo oriundo desses animais parecia renovar-se à luz do sol, tornando-se progressivamente mais brilhante e forte. Daí ter sido escolhido para tingir as togas dos imperadores e da alta nobreza.

Para a obtenção de um único grama desse pigmento, eram necessárias de nove mil a dez mil unidades do Murex brandaris, e o processo de extração da secreção e da sua transformação no pó, que tingiria tecidos e seria empregado ainda em pinturas, afrescos e objetos decorativos, levava dias.
Consta que, durante o reinado de Nero, houve uma grande escassez dos moluscos, o que levou o imperador a editar um decreto condenando à morte quem se atrevesse a usar a cor púrpura, reservando-a unicamente a si próprio.
Em 2020, um grama de púrpura de Tiro obtido pelo método tradicional é vendido em sites europeus por cerca de € 3 mil, ou 60 vezes o preço da mesma quantidade de ouro.
4. No Renascimento, o óleo e a versatilidade dos pigmentos
Até a Idade Média, as técnicas antigas do afresco e da pintura a têmpera (uma mescla de pigmentos minerais e aglutinantes como clara e gema de ovo, além de resinas) ainda eram a regra geral.
Apesar de permitir alguma manipulação, com a adição de água para diluir a intensidade dos tons – sempre brilhantes e opacos –, tais métodos derivavam em pigmentos em geral chapados e pouco variados.

O óleo, usado pontualmente já na Antiguidade e no período medieval e adotado em larga escala em Flandres, na atual Bélgica, a partir do século XIV, possibilitou uma revolução que deu à pintura do Renascimento um nível de sofisticação e logro artístico jamais observado antes no Ocidente. E essa transformação teve seu epicentro na Itália, no contexto das intensas trocas comerciais entre comerciantes de Veneza e Flandres.
O novo aglutinante era obtido primeiramente da terebintina, óleo essencial que é produto da destilação da resina do terebinto e das coníferas. Mais tarde, também o azeite da linhaça passou a ser empregado. Misturados a pigmentos já conhecidos, como o lapislázuli, entre outros, esses óleos permitiram a criação de novas tonalidades que derivaram em quadros e afrescos com texturas, perspectivas, paisagens em três dimensões.

Grandes mestres italianos da pintura, como Rafael, Michelangelo, Da Vinci ou Tintoretto, passaram a desfrutar, a partir do século XV, de graduações de cores inéditas.
A técnica do sfumato, a transição de tons grises que evoca luzes e sombras, uma invenção de Da Vinci, surgiu nesse contexto.
5. A invenção da tinta sintética
A Revolução Industrial, entre os séculos XVIII e XIX, trouxe as primeiras tintas produzidas em larga escala em fábricas. Em meados do século XIX, surgiram as primeiras versões já prontas, sem necessidade de diluição ou qualquer outro processo para a obtenção do tom. Além da arte, novas aplicações como revestimento numa crescente gama de produtos industrializados e comercializados mundo afora fizeram as tintas experimentarem um salto sem precedentes.
A nitrocelulose, um composto sintetizado pela primeira vez em 1846 pelo químico germano-suíço Christian Schönbein – usada em explosivos, propulsores de foguetes e no celuloide dos rolos de filmes cinematográficos – também se tornou a base de uma nova família de tintas, de forte aderência e resistência.
A indústria de automóveis rapidamente se beneficiou dessas características e passou a emprega a nitrocelulose amplamente para a pintura de carros. Nos anos 1930, tais tintas continham unicamente 30% de sólidos, e o restante eram compostos orgânicos voláteis (COV), que se acumulam nas camadas mais altas da atmosfera, poluem o ar e são potencialmente nocivos para a saúde.

Ao longo do século XX, o teor de solventes das tintas foi se reduzindo gradativamente, chegando, atualmente, a 15% nas tintas de altos sólidos – e eliminando-se nas tintas de base aquosa. A produção dos pigmentos a partir de compostos sintéticos permitiu a multiplicação de cores, a tal ponto que, hoje, considera-se potencialmente infinita a quantidade de tons que se podem criar.
6. Como 'pintar' um coração (literalmente)
A virada do século XX para o século XXI conheceu a acelerada revolução digital, que faz a produção de conhecimento – arte incluída – saltar dos suportes físicos definitivamente para a esfera virtual. Era compreensível que a tinta também ganhasse um renovado fôlego. Mas, o que cientistas em diferentes países vêm apresentando nos últimos anos parece ser obra de ficção científica ainda difícil de entender.
No Centro Acadêmico Rutgers de Biomedicina e Ciências da Saúde, da Universidade do Estado de Nova Jérsei, nos EUA, por exemplo, pesquisadores anunciaram recentemente uma tinta biológica própria para imprimir partes (ou a totalidade) de órgãos humanos em impressoras 3D.
Multiplicada em escala industrial, a novidade representará uma transformação completa no universo dos transplantes. Feito de ácido hialurônico e polietilenoglicol, esse material gelatinoso seria capaz de reagir quimicamente em contato com tecidos humanos, permitindo sua regeneração ou, potencialmente, a construção de tecidos e órgãos do zero.

Há dois anos, cientistas da Universidade de Newcastle já haviam conseguido usar outra versão de tinta biológica, obtida pela mescla de células-tronco de um doador, alginato (substância gelatinosa extraída de algas marinhas) e colágeno, para imprimir córneas humanas em nível experimental, e em menos de 10 minutos.
"O gel mantém vivas as células-tronco. É suficientemente rígido para manter a estrutura da córnea e suficientemente fluido para poder passar através da cânula de tinta da impressora 3D", escreveram os autores daquele estudo.
O que, lá no início de tudo, parecia um intento do homem de ponderar sobre a própria vida, recriando-a nas paredes das cavernas, será, num futuro bem próximo, a criação literal de vida através da tinta.
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