Como o ZX Spectrum transformou o universo dos games para sempre

Descubra como Clive Sinclair contribuiu para democratizar o acesso aos videogames e inspirou milhares de criativos

A década de 1980 é conhecida por sua efervescência criativa que deu origem a grandes obras na música, cinema e tecnologia. Dentre elas estão os videogames, que ganharam o mundo através dos arcades, consoles e, claro, o PC Gaming.

Hoje um mercado avaliado em quase 70 bilhões de dólares e 2.7 bilhões de usuários, o universo dos games nasceu e se expandiu através da mente de pioneiros como o inventor e empresário inglês Sir Clive Sinclair.

Falecido em 16 de setembro aos 81 anos, Sinclair fica na história como o criador daquela que foi uma das plataformas mais amadas dos anos 80 e que viria a influenciar decisivamente a forma como os jogos eletrônicos se expandiram dos fliperamas para o ambiente doméstico: o mítico ZX Spectrum.

Sinclair e o fascínio pela tecnologia

Desde muito pequeno, Clive Sinclair se interessou por matemática e invenções. Seu pai e seu avô eram engenheiros, então o criar sempre esteve presente em sua rotina. Fascinado por tecnologias, especialmente as eletrônicas e computacionais, o jovem Sinclair trabalhou em diversas empresas do ramo, tentando criar veículos elétricos.

Durante a faculdade, vendia kits DIY de rádio em miniatura pelo correio, algo que se tornou um negócio real com venda de calculadoras e outros gadgets. Foi dessa forma que começou a produzir os primeiros kits de computadores para escolas e faculdades. A ideia seguinte foi levar computadores para dentro das casas das pessoas num momento em que tecnologias como essas eram caras e inacessíveis para a maioria.

Assim, em 1980 nasceu a linha de computadores ZX e, na sequência, em 1982 o ZX Spectrum - primeiramente ZX82 e logo rebatizado por Sir Clive Sinclair para realçar o facto de este computador produzir imagens em cores, ao contrários dos anteriores modelos da Sinclair Research, o ZX80 e o ZX81.

O modelo foi o grande responsável por revolucionar o mercado de videogames e criar uma cena de programação amadora que inspirou diversos criativos. Primeiro em Inglaterra, mas logo em todo o mundo.

ZX Spectrum e o acesso a um novo universo criativo

Clive Sinclair não tinha intenção de criar uma plataforma de games, apenas democratizar o acesso às tecnologias e facilitar o acesso à programação. Entretanto, o impacto de sua obra fez surgir um cenário efervescente de programadores, designers e até músicos eletrônicos.

De acordo com o historiador Tom Lean no livro Electronic Dreams: How 1980s Britain Learned to Love the Computer, de 2016, nos anos 80 os computadores formaram um extraordinário ambiente criativo através da simplicidade. Como eram abertos à experimentação, diversos programadores aprenderam a criar jogos através desses computadores, especialmente o ZX Spectrum.

Num trecho da obra, Lean ressalta: "A cena dos jogos era vasta, com milhares de jogos de diversos gêneros, produzidos por centenas de empresas, em dezenas de plataformas diferentes. Entretanto, um exame de apenas alguns dos títulos e técnicas mais inventivas do início dos anos 80 ilustra as grandes realizações técnicas e criativas dos desenvolvedores de jogos".

Características básicas do ZX Spectrum

O ZX Spectrum, especialmente, oferecia uma plataforma simples e foi justamente esta característica que criou um meio flexível para criação de jogos que não tivessem que obedecer a regras rígidas. O aparelho lembrava mais uma calculadora do que um computador, mas ajudou a democratizar o universo dos games na Europa, vendendo mais de 10 milhões de unidades.

Seu nome inicial era ZX82 e podia ser conectado a uma televisão, oferecendo mais qualidade de imagem do que os modelos anteriores da família ZX, os ZX80 e ZX81. O termo Spectrum surgiu por sua capacidade de projetar uma paleta de cores mais ampla, superando o tradicional preto e branco.

O modo de texto do Spectrum era constituído por 24 linhas de 32 caracteres, equivalente a uma resolução gráfica de 256 pixéis na horizontal e 192 pixéis na vertical. Além disso, podia produzir 15 cores através de 8 cores de base, numeradas de 0 a 7 e outras 7 cores eram variações criadas a partir das cores base com o brilho de tela. As cores base são: Preto (0), Azul (1), Vermelho (2), Magenta (3), Verde (4), Cyan (5), Amarelo (6) e Branco (7).

O teclado de 40 teclas - uma marca registrada do aparelho - era composto por uma placa de borracha flexível com teclas moldadas num formato semelhante a chiclete. Estavam disponíveis letras, símbolos, números e palavras-chave para facilitar a programação.

Não existiam as comuns teclas de cursor/seta, nem tecla de apagar. Por isso era necessário utilizar uma combinação de teclas ou executar comandos. Essas ausências foram resolvidas posteriormente em teclados de reposição.

Para os jogos, eram utilizadas fitas cassete comuns que, apesar de lentas, carregavam todos os dados necessários para execução de um game (no vídeo abaixo pode ver como era o processo de carregamento de um jogo). Paciência era um requisito obrigatório para qualquer gamer da época!

Inspiração para jovens criativos

O criativo e diretor de arte da Domestika Gabriel Suchowolski, mais conhecido como Microbians (@microbians), foi um dos que viveu de perto o impacto transformador do ZX Spectrum, que recorda como uma época de descoberta e exploração criativa.

Para ele, o acesso à tecnologia chegou cedo, pois seu pai tinha uma empresa que vendia computadores. "Não eram marcas conhecidas, mas quase todos eram computadores de alto nível para grandes empresas. Um dos que ele vendia era para o público em geral, um SORD M5, um pequeno computador com cartuchos que poderíamos dizer que era um pouco o precursor do MSX. Mas, a dada altura, na casa de amigos, conheci o ZX Spectrum", recorda.

E Gabriel acrescenta: "A partir daí, passávamos horas copiando códigos das poucas revistas disponíveis na época sobre o assunto e mais horas jogando nos fins de semana. Meu contato com a programação veio por causa disso, como não tinha o computador mais conhecido, e não tendo tantos jogos para a SORD, aprendi BASIC e comecei a fazer meus próprios videogames com o que aprendi na casa de meus amigos, tentando replicar o que podia ser feito no ZX Spectrum".

Ainda no livro Electronic Dreams: How 1980s Britain Learned to Love the Computer, Tom Lean aborda esse mesmo tema e ressalta que "o Spectrum era uma tela em que você poderia fazer o que quisesse. Não era tão rápido, mas permitia que as pessoas criassem o que estivesse na imaginação, dando espaço para ideias ousadas".

A evolução do ZX Spectrum

Além do modelo tradicional do ZX Spectrum, a empresa de Sir Clive Sinclair chegou a lançar upgrades que aprimoravam a experiência dos aparelhos. Em 1984, o ZX Spectrum+ ganhou um teclado mais avançado, Barra de Espaços aprimorada, Enter maior e teclas para os cursores, além de teclas de vírgula, ponto, ponto e vírgula, aspas e Delete.

Em 1986, surgiu o ZX Spectrum 128 com o teclado do ZX Spectrum+, 128K de RAM e novas conexões como saída para monitor RGB, entrada para sintetizadores MIDI, porta serial, teclado numérico adicional, chip de som e um novo editor de códigos.

Também chegou ao mercado um modelo chamado de Sinclair QL, mais poderoso, que por falhas de qualidade, construção e concepção se tornou um fracasso comercial. Apesar disso, foi uma máquina reconhecida por seu sistema operacional inovador com capacidades multitarefa.

Por conta do fracasso do Sinclair QL e do C5, um pequeno carro elétrico que Sir Clive insistiu em produzir, a linha de computadores ZX Spectrum foi vendida para a Amstrad.

Sob a responsabilidade da Amstrad, foram lançados três novos modelos do ZX entre 1986 e 1987: ZX Spectrum +2, ZX Spectrum 128K +3 e ZX Spectrum 128K +2A/B. Todos acompanhavam um gravador de fita cassete acoplado, mas este recurso não foi o suficiente para manter a plataforma viva no mercado.

Os games do Spectrum

Em 1984, apenas dois anos após o lançamento, 3.500 jogos haviam sido lançados para o ZX Spectrum. É claro que nem todos eram um primor em qualidade e sofisticação, mas dentre eles estavam grandes títulos inovadores aclamados pela crítica. Foi neste período que criar jogos começou a tomar forma, se tornando um mercado em que era possível gerar dinheiro e profissões em torno.

Clássicos como Galaxians, Chuckie Egg, Match Day, Match Point, Manic Miner, Atic Atac, Jet Pac, Jet Set Willy ou Daley Thompson's Decathlon, por exemplo, conquistaram milhares de crianças e adultos com linguagens simples, por vezes até simplistas, mas que mostravam as possibilidades criativas dos jogos eletrônicos, o impacto dos sons na jogabilidade e uma estética que, apesar de limitada, influenciou diversos profissionais e continua a influenciar até hoje.

"ZX Spectrum foi o primeiro computador que realmente entrou em cada casa e o precursor de grandes programadores que viveram esta tecnologia desde muito jovens. Ele nos fez sentir como nos filmes dos anos 80, como no TRON... e ter acesso a isso, com todas as limitações, foi o que nos impulsionou criativamente, certamente na busca de soluções engenhosas para poder fazer jogos, ou programas, especialmente no meu caso, misturando gráficos pixelizados e programação, experimentando e se divertindo", revela Gabriel Suchowolski.

Jet Pac, por exemplo, é um jogo de plataforma de 8bits que inspirou diversos outros títulos. Knight Lore inovou ao apostar numa atmosfera 3D e visão isométrica, linguagens quase impossíveis de serem criadas em códigos tão limitados como os do ZX Spectrum. Ainda assim, essas criações repletas de ideias malucas inspiraram toda uma geração e ainda mantêm o interesse para novas gerações.

Criar um bom jogo vai além dos gráficos, como vemos hoje na indústria, e tem a ver com usar a tecnologia disponível para criar uma experiência interessante o suficiente para divertir e entreter.

Um exemplo contemporâneo é Among Us, jogo com gameplay simples, relativamente fácil de entender. Por isso não é preciso muito tempo para que qualquer pessoa - seja um gamer veterano ou não - possa ir direto para a parte divertida. Além disso, boa parte da gameplay envolve skills e conhecimento "offline", como conversar com outras pessoas, saber mentir, saber investigar. Essas características tornam o jogo convidativo para quem não é gamer hardcore e já teve experiências prévias com jogos de cartas como Truco.

Foi justamente esta experiência que, em um nível mais rudimentar, mas não menos importante, a invenção de Clive Sinclair proporcionou a milhares de pessoas em todo o mundo. A experiência de imersão em algo que está ao alcance de qualquer um.

E, embora o ZX Spectrum não tenha sobrevivido como uma plataforma depois dos anos 90, perdendo espaço para Apple e Microsoft - além do mercado de consoles, claro - é uma criação que pode ser considerada tão relevante quanto a criação do Windows.

Clive Sinclair foi responsável por democratizar o acesso à tecnologia e inspirar uma ampla comunidade criativa, aquecida até hoje. Um legado poderoso que continuará mesmo sem seu criador.

"A indústria de jogos ainda teria existido sem o Spectrum, é claro, mas teria sido dominada por empresas americanas como Commodore. Os desenvolvedores britânicos ainda teriam surgido para atender ao novo mercado de jovens jogadores ávidos, mas não teriam que navegar pelas excentricidades da criação de Sinclair. Uma centelha de invenção que nunca teria explodido", conclui Tom Lean.

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