Ameixa
von milena_emery_lima @milena_emery_lima
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Observação 1: Texto escrito em português.
Observação 2: Críticas são muito bem-vindas.
Autoria: Milena Emery
Ameixa
A mulher não entrava no chuveiro havia dias, não sabia exatamente quantos, mas seu cabelo desgrenhado, axilas fedorentas e pele oleosa revelavam um tempo considerável. Dessa forma, não se lembrava da última vez que havia cagado, resultado de passar dias inteiros deitada em seu colchão bolorento. Os únicos momentos em que se levantava eram para sentar-se em sua dura cadeira de plástico, quando se sentia forçada a ligar o notebook e escrever por horas e horas e horas, somente para clicar no X e apagar tudo de madrugada.
Às vezes passavam-se semanas, sem encostar no computador ou em uma caneta. Xingava constantemente quem a fez deste jeito. Almejava sair daquele fim de mundo. Queria conhecer lugares. Paris, Nova York, Bali, ou até algum lugar no Nordeste, com águas quentes e praias cristalinas. Queria comer refeições dignas e comprar roupas bonitas. Ter uma casa bonita, ter uma vida bonita! Mas fora amaldiçoada. Não conseguia fazer nada além disso e nem mesmo sabia fazê-lo. As poucas vezes que saía do cubículo eram marcadas por idas aos sebos. Depois voltava cheia de livros amarelados, com as capas descascando, cheirando a mofo e comprados com dinheiro que nem ela sabia de onde tirava. Lia páginas escritas por pessoas mortas há séculos enquanto lágrimas escorriam desesperadamente de seus olhos, se perguntando como. Como conseguiam? Como se livraria desta praga? Como se livraria da doença?
Trocara as pessoas vivas, de carne e osso, pelas invisíveis. Tinha consciência de seu problema, mas mal tinha dinheiro para comer, quem dirá então para ir ao médico. De qualquer jeito, o que ele falaria? A mandaria para a casa verde? Prescreveria um bando de pílulas? Não, o médico não adiantaria. Poderia ir à igreja, como quando era criança e obrigada a ir pelos pais. Neste caso o problema não era financeiro, mas espiritual. Não era religiosa, havia lido Nietzsche, afinal. Sem contar que, se existisse um Deus, estaria emputecida com ele por tê-la feito viver com esta desgraça.
Quando começava a escrever não parava até terminar. Caso não conseguisse, deletava tudo, não importava quantas palavras haviam sido escritas. Achava que tudo estava uma merda. O pior era quando decidia escrever a mão, diretamente no papel. Sua mão direita já era dolorida desde criança, com o dedo médio lotado de calos que apareciam e nunca mais saiam. Porém, se não conseguisse finalizar o que começara, tranquilamente guardava os papéis em uma gaveta e deixava-os intocados, até a noite de lua cheia, quando queimava todos à meia-noite. Jogá-los fora não era suficiente. Precisava ver que aquelas palavras, aquelas frases, não existiam mais, em lugar nenhum.
Andava tão doente, tão louca – talvez esta fosse a palavra: l-o-u-c-a – que não percebera a outra doença, a doença das pessoas saudáveis e normais. Só descobriu o que estava acontecendo quando a pediram para colocar máscara ao entrar no mercado. quando viu que era a única com o nariz descoberto. “Não moço, não acho que o que tenho seja contagioso”, disse. Ao perceberem que a mulher desconhecia o Coronavírus a olharam como se um chifre tivesse crescido em sua testa, por sorte estava acostumada com tal olhar. Inteiraram-na a respeito da situação, inconformados com sua desinformação. Quando terminaram de falar, ela desistiu de entrar na loja e não demorou a voltar ao seu cubículo. Sentia-se forçada a escrever e, como não conhecia cura para sua própria virose, obedeceu.
Não conseguiu, porém, expressar o que queria. Sentia-se uma farsa, uma mentirosa. Falava sobre assuntos desconhecidos como se os tivesse experienciado. Nunca havia encostado sua boca em outra e escrevia sobre sexo como se fosse um animal. Escrevia sobre o amor, mesmo sem sentir a mínima vontade de ter alguém. Lembrava como se fosse ontem dos seus tempos de escola – das meninas falando de meninos, algumas falando de meninas, alguns de meninos –, mas a mulher nunca teve interesse em participar. Queria saber apenas de memorizar as falas daquelas crianças, para, mais tarde, passá-las para o papel e colocá-las nas bocas de personagens. Falava sobre família, como se a sua não estivesse morta. E agora tinha um novo tópico a adicionar a lista: falava da doença das pessoas saudáveis, sendo ela consumida por outra doença, a doença das pessoas loucas.
“Mentirosa”, pensou.
Hoje (não, já era madrugada). Ontem, foi um dia incomum. Não recordava de sua última interação com um ser humano. Repassava a cena do mercado em sua cabeça sem parar. O que mais a amedrontava não era a situação do mundo lá fora. A insanidade era o seu estado de comodidade. O que mais a amedrontava era o som de sua voz, há milênios inutilizada. Contudo, o som fluiu naturalmente. Dançou pelas cordas vocais até a língua. Sujando-se de saliva, encostou-se nos dentes e deslizou suavemente pelos lábios, até se libertar pelo ar. Foi como uma borboleta, a qual pousa na orelha de quem estiver por perto e conta os segredos vindos de dentro da mulher. Não. Moço. Não. Acho. Que. O. Que. Tenho. Seja. Contagioso.
Não resistiria a sedução de tentar novamente. Foi à procura de outra palavra para pronunciar. Pensou pelo que poderiam ser minutos ou horas – não entendia sobre tempo – e escolheu. Ameixa. Fingiu – envergonhada por sua falta de autocontrole – que havia a escolhido, e não que sua cabeça se grudara a ela a ponto de não conseguir pensar em mais nada. Ameixa. Foi até a escrivaninha e pegou uma caneta de tinta azul escura. Escreveu em um papel qualquer. A M E I X A. Analisou cada letra e sentiu a delicadeza de sua boca mental estremecendo seu corpo ao ouvi-la repetidamente. Ameixa. Ameixa. Ameixa. Quando finalmente conseguiu contar até três em sua cabeça, preparou-se para pronunciar sua sentença e...
A boca tremeu, mas não saiu som algum. Sentiu um ardor terrível. Água. Precisava de água.
Correu até a única pia do cubículo e, com a mão trêmula, girou a torneira de metal. Gélida. Nada. Nem um pingo. Pressentiu a morte e, surpreendentemente, desejou-a. Estava cansada. Deixou-se cair de joelhos e, com um esforço prazeroso, implorou pelo fim. Sua enfermidade a impedia. Enquanto a doença dos saudáveis puxa-os para o Hades, a doença dos loucos puxa-os para a vida. Se é que podemos chamar isto de vida. A mulher não era permitida a fazer nada além de escrever. Mesmo quando não estava escrevendo, escrevia. A-mei-xa. Tentou falar novamente, mas, desta vez, não conseguiu nem abrir a boca, estava endurecida e a língua seca como a caatinga. Caída, não movimentava nem o dedo mindinho sem a força de um cão. Foi então que sentiu a fome se misturar com a sede. Lutou para arrastar sua mão até a barriga. A mulher não passava de uma pilha de ossos coberta por um fino lençol de pele. Deveria estar morta. “Por favor”. Mas não morria. Sabia apenas sentir a dor, a fraqueza e o desamparo. Ameixa.
Ocorreu-lhe então, a cura de seus males – bem assim, de repente – a voz de seu cérebro decidiu pela piedade e contou-lhe. Simples assim.
A vontade de acabar com tudo venceu a fraqueza. Virou seu corpo inteiro de bruços – a este ponto estava toda esparramada no chão – e catou os papéis largados a seu lado, junto com aquela caneta usada mais cedo. Finalmente contaria uma história real. Finalmente escreveria sobre algo conhecido. Já estava nas últimas linhas e, se enchendo de alívio, conseguiu misturar o prazer ao sofrimento. Agradeceu a voz de sua cabeça, pela salvação, e preparou-se para a palavra final. Ameixa.
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