Nua rotina
Nua rotina
von ROSA ACASSIA LUIZARI @rosa_luizari_1
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Pensei na melhor personagem para esta história. Sala e quarto pequenos, os olhos também. Uma luz branca é filtrada pela janela todas as manhãs. O teto é baixo e as paredes amarelas são bem intencionadas, não têm ouvidos. O escritório fica dentro do quarto para economizar o pouco espaço em um bairro central da cidade. Meu quarto é o melhor lugar para escrever. Imagino como seria bizarro eu escrevendo dentro de uma casa de shows. Imaginaram a cena? Eu não. Perto da minha casa tem uma, mas não faz sentido para mim frequentá-la, então, prefiro ficar do outro lado da rua. Meu bairro é discreto durante todo o calendário. Aos sábados, quinze horas é o ápice do toque de recolher. Aos domingos, ausentam-se carros, pessoas e gatos. Às vezes encontro aquela de estatura mediana, cabelos brancos e olhos castanhos que frequenta ônibus circular mas também experimenta as ruas da cidade à pé. Reúne-se com mais duas vizinhas para trocar ideias. No entanto, aos finais de semana, as três também desaparecem.
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Voltemos à minha casa. O chão de taco sustenta o passo brutal ou leve, a depender do meu humor. À mesa do escritório, a matéria-prima para a construção da autobiografia. São várias as motivações que me levam à escrita. É legal pensar na viagem fictícia à Holanda, no urso de pelúcia e pijama que ganhei de presente de Natal e na resenha do livro predileto. A entrega das emoções e dos segredos escondidos na impressão digital é o prazer maior no ato de escrever. A coluna vertebral é atravessada pelas palavras escritas em páginas antigas. A radiografia mostra o efeito das múltiplas linguagens que abraço. Guardo ensaios, poemas, romances. O resto são acessórios. São 19h29 quando escrevo esse parágrafo. Quase meio de dezembro e a prática de me autodecifrar torna-se cada vez mais divertida e necessária. Ela está sentada em frente ao notebook. Ela tem olhos pequenos, cabelos médios. De manhã, precisa de café para escrever. Pega pesado quando gruda no texto. Às vezes não janta para não perder o fio da meada e termina o capítulo do jeito que deseja. Meia-noite é dia. A noite é uma criança.
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Responder à pergunta "Quem é você?" parecia algo tão simples, mas agora percebo o contrário. Minha síntese está na foto 3 x 4 e sou privilegiada por carregar fotossíntese comigo todos os dias na bolsa de valores. Claro que a posição em uma foto desse tipo não me parece ser uma das mais confortáveis. Corpo achatado e resumido em cabeça e parte do tronco dificulta a visão de todas as espécies de ideologia que podem me atravessar por inteiro. Uma ideologia não ocupa apenas a cabeça. Ela afeta a organização do trabalho mental, a propaganda apolítica que joga flechas em todas as direções (mas nem sempre acerta) e as linhas heterogêneas que constituem a massa muscular desenhada nas caminhadas diárias enquanto me dirijo ao espaço das formalidades. Isto significa que do lado de fora do avesso convivem ideologia, literatura e baixa periculosidade.
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Considero única essa tarefa de autoexplicação. Você busca a palavra certa, a minúcia no interior de si mesma e joga no Google pra ver o que dá, mas ele não responde de modo suficiente. A dimensão teórica de explicar a si mesma parece não caber em nenhuma inteligência artificial. Por isso, resolvi fazer mais um curso de escrita de não ficção para pensar a respeito de mim mesma e porque minha vida pouco tem de fictício e está longe de desembocar em filmes de terror. Nasce daí uma relação de mim para comigo mesma e que será diferente quando eu compartilhar com meus leitores estas palavras. Há em mim a mistura complexa entre a neura organizacional das pautas cotidianas e o senso comum inscrito nos ossos da mão quando a brincadeira assume o primeiro plano. Então escrevo para que meu leitor venha a saber de mim mesma quem sou, sem recorrer a outras bocas e ossos de outras mãos para sabê-lo. Às vezes, vejo o mundo à minha volta e me sinto cansada. Vou à padaria e eis que leio o texto pintado na parede enquanto aguardo na fila para pagar: Cansado? Não desista!! Sempre há um pão quentinho na boca do forno.
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Sorrio discretamente e volto para meus afazeres. Ao computador, dou início a este texto. Penso em minhas referências no campo das artes e lembro-me de uma carta que escrevi há uns meses cujo destinatário é um ilustre desconhecido. A carta diz: Minha válvula de escape é a criação. A arte de estar escritora exige rebuscamento, não da palavra, mas da consciência. Na escrita encontrei a forma perfeita de autoanálise. Derrubei meus próprios alicerces. Cortei pela raiz a personagem de batismo e adotei a minha própria. No início, saí do zero, passei pelo nada e cheguei a algum lugar. Descobri-me clariceana. Foi isso que me levou a contar que tenho medo da noite. Não por causa do latido solto e insistente do cão em meio a sons pontuais de motos baratas à vinte horas. Não porque as janelas fecham-se ao exterior visto pelas frestas do quarto cubículo. Apenas tenho medo e ele se esconde na rua ou na roupa e a personalidade retrógrada espera seu golpe fatal ao anoitecer das dezesseis horas. No quarto ao lado, a tosse discreta de minha antecessora acompanha o som da noite. Passo a chave na porta e o enfrentamento que vem depois é assustador e isso isenta-me de contar-lhe maiores detalhes agora. Quando a noite sai de cena, pouco resta de mim na cama fria. O calor do corpo apaga-se, devagar, e levo comigo a tradicional bagagem de apelos a uma noite que não chega. Lá fora, a chuva carrega o fardo pesado dos acontecimentos de mais um dia. A vida corre solta enquanto espero mais um anoitecer das dezesseis horas. Para não dormir. Vejo o alerta insistente de meus próprios contornos e volto ao computador para apreciar o trabalho de cores em Paul Klee. Parece contraditório. Tanto espero o pôr do sol para o repouso do corpo e o sono não vem. É o tempo para observar os pontilhados, colorir os círculos, registrar o único olho. Revisito as indicações de Shaun Levin para aprimorar a escrita. Deito-me e espero.
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Neste momento não sei qual é a sensação de apertar a mão de outro personagem. O que tenho para hoje é a sensação de autoabraço. Não saberei dizer se a voz é irritante, áspera, sutil e nem o efeito da fala de um outro alguém em meu cotidiano. É difícil descrever como me sinto diante da ação inesperada daquela moça, do menino ou do cachorro no quintal. Fico com a ideia desconfortavelmente silenciosa do riso de escárnio ou da palavra convincente. O que preciso agora é de um monólogo, uma cena solitária para cativar leitores, talvez futuros personagens de minha primeira cena. Convido meu leitor para compartilhar comigo a sensação de estar na história. Quero compor um dueto para um cenário em que os diálogos sejam os mais inspiradores. Seria pedir muito?
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Ao criar um monólogo, às vezes me ocupo com o cerne da questão. O que é mais importante para mim é a resolução do medo. Sou a mulher a querer a saída do limbo, mas não o fim do corpo sólido. Dispenso qualquer válvula de escape. Sonho vazio no copo tão líquido já não existe. Sonho é um vocábulo extenso. Ele requer tempo para a própria consolidação. Já o medo talvez esteja na gíria macia, na novela rasgada, no tempo passado. Estou prestes a dar um grito de alerta. Preciso recuperar o medo no cotidiano a fim de superá-lo. A oportunidade para esta superação me aguarda e há um livro para abrigar minha ideia. Não quero a questão que se encerra no ódio, mas o fim de ciclos repetitivos e apagar o caminho oposto à coragem. Apago o cerne do nada em um sinal de ousadia. A mim já não cabe o tom do enredo perdido. Renuncio às questões mal resolvidas para cortar o medo pela raiz.
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Quando a infância foi substituída pela adolescência, o medo ganhou um outro caráter. Aos quatro, o medo era de ficar sozinha na praça. Aos seis, o de ficar sozinha na escola porque a família estava em casa. Aos doze, o de não ter amigos e ter de vencer as muralhas impostas pela vida quase adulta. Eu tinha a meta de estudar, trabalhar, dirigir o meu carro, ser independente, viajar, sair com amigas, cuidar da saúde e proporcionar uma vida digna para mim mesma. Aos dezenove, as metas foram reduzidas pela metade, mas obtive êxito. Nunca havia pensado sistematicamente a respeito do medo. Se ocupava espaço em minha vida, não tinha validação. Demolir paredes não era prioridade.
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Agora que demoli paredes, posso dizer que meu DNA é cheio de surpresas e tenho alta resistência a angústias. Sou paciente com minhas emoções. O processo de estar comigo mesma é acompanhado pelas canções dos anos 1960 até o final dos anos 1990. Nunca estou cansada ou alheia aos problemas. Preciso conhecer o México e a Itália. Dispenso o porco para guardar dinheiro e lembrancinhas de final de ano, mas agradeço pelos bombons e livros antigos que ganhei de presente. Ao contrário do célebre escritor Lima Barreto, aprecio o ambiente doméstico e a casa que abriga meu corpo é bastante agradável. Em minha casa o medo não cabe. Aqui há espaço somente para memória, memórias e híbridos de todos os tipos (sejam todos bem-vindos). Ao medo, apenas o espaço da minha escrita.
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Nada de pavor psíquico. Sei que o medo me fez sobreviver como espécie. Devo isto a ele. É uma questão de prudência ter medo de dirigir apressadamente, sair tarde da noite, me arriscar onde sei que não posso. Há medos justificáveis e estratégicos. Sou adepta destes. O medo pode ser estratégia de autoproteção. Nego-lhe a gravidade que apresenta a síndrome do pânico e a covardia, que matam cotidianamente.
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