A história de todas essas histórias
de Tati Lopatiuk @tatilopatiuk
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Respiro fundo, os olhos bem abertos, estou prestes a embarcar em mais um mundo desconhecido. Mais uma história entre tantas, e me sinto ansiosa como se fosse a primeira. É uma paixão antiga, o cinema, e se renova a cada filme que assisto.
Um registro puro que o tempo não pode apagar, a lembrança de ser acordada pelo meu pai para assistirmos filmes de madrugada na TV. Isso é hora de criança estar fora da cama? Pensando bem, era. Era reconfortante a facilidade com que meus olhos se adaptavam ao breu da casa, onde o único ponto de luz era o protagonista dançando na tela.
Eu me lembro das lágrimas inundando meus olhos a cada novo filme. Histórias cheias de significado, valores que acertavam em cheio meu coração. Sem palavras que explicassem, apenas lágrimas e o encantamento de me sentir parte, de alguma forma, da história que ali estava sendo contada. O filme na sua última sessão, entrei confiante na sala de cinema. Sabia que seria um momento singular dentre tantos.
Eu me lembro do que não vi, fechando os olhos nas cenas mais assustadoras. De olhos fechados, eu ainda sabia o que acontecia. Mesmo sem saber, eu sabia.
Por que eu sempre soube.
O OLHAR DE DANNY ZUKO
Aquelas noites em que meu pai me acordava para ver filme com ele eram as melhores. Na época, não era capaz de compreender isso, e encarava com displicência nossos encontros noturnos.
(Bom, eu sempre encaro tudo com displicência, enquanto por dentro meu coração é uma bomba-relógio prestes a disparar ao menor sinal de afeto.)
Na madrugada, aqueles momentos eram a nossa chance de saber mais um do outro, em um diálogo silencioso articulado pelo tempo que passavamos juntos. Assistir a TV, falar sobre os filmes do Intercine, tocar guitarra, ler revistas antigas, aprender as horas.
De olho no relógio na parede, um item típico dos anos 90, versão ampliada e cafona de um relógio de pulso, eu aprendia as horas e tinha uma ilusão da exclusividade do afeto do meu pai.
E havia os filmes. Assistimos a tantos, clássicos ou novidades, filmes diferentes e insólitos, que pareciam existir somente naquela dimensão, que era exclusivamente nossa.
Quando Danny Zuko se vira, olhando para a câmera, sorrindo de canto, é só para mim que ele olha.
Grease sintetiza esses momentos com meu pai, que foram muitos. Foi o filme que mais assistimos e, depois, quando cresci e passei a vê-lo em muitos lugares, uma referência no cinema, o fato de ele existir no mundo “lá fora” como que confirmava tudo o que vivemos aqui dentro.
Lembro de tudo isso, mas não sou capaz de lembrar como essa lembrança termina. Eu dormia ali mesmo, ou meu pai me colocava na cama? Ou então, nada de sono e eu me deitava apenas por ser tarde demais, apenas por obrigação.
Não sei dizer. Todas as lembranças que tenho contemplam meus olhos bem abertos, absorvendo toda a luz que eu pudesse obter.
ELIO SENTE TUDO E DEMAIS
A luminosidade da tela me atrai como a um inseto desejando a luz. Nem sempre é bom, pode ser enganador. Por favor, ajuste as suas expectativas. Não coloque sua vida nas mãos desse filme ou de qualquer outro. De todo modo, sempre há algo bom em se arriscar.
Entro para a sala de cinema, é a última sessão de Me Chame Pelo Seu Nome, depois daqui, o filme sai de cartaz. É a primeira vez que o assisto.
O ingresso, a pipoca, a ida até ali, tudo faz parte de um ritual solitário que me faz sentir bem. Uma pessoa é capaz de andar com as próprias pernas. Não importa se é uma paixão só sua, se você puder fazer dela a sua companhia em si. Alguém executa o grandioso ato de gastar duas horas do seu tempo assistindo a uma história de amor.
As pessoas fazem isso o tempo todo, mas em minha arrogância teimosa, gosto de pensar que só eu sinto tudo e demais.
Conforme a trama avança, mais meu coração é preenchido, de modo que até o final da sessão, ele transbordou. Foi bom ver que, na tela, o protagonista também chorava. Ratificou meu sentimento, o que era providencial.
Sou alguém que sempre precisa ter seus sentimentos ratificados.
Saindo da sala de cinema, um olhar rápido para as pessoas que saiam da sessão comigo. Senti uma onda de timidez me atingir. Eu dividi esse momento tão íntimo com essas pessoas? Será que elas sentiram igual a mim? Será que elas sabem o que sei? Será que sentiram o mesmo?
Então, vi o cartaz. Era a última sessão, provável que jogariam fora assim que o expediente encerrasse. Cogitei pedir ao segurança, mas a timidez ainda me dominava.
Não posso demonstrar que senti tanto, que fui tão impactada. Fechei a jaqueta, me sentindo subitamente exposta. Baixei a cabeça, fui embora do cinema.
Meu Deus, é tudo muito íntimo. Como as pessoas têm coragem de assistir a filmes?
QUANDO OS OLHOS DE DANI SE FECHAM, O HORROR
Não tenho coragem de abrir os olhos. Só o som já é horripilante. Ainda assim, mesmo de olhos fechados, eu posso ver. O medo. A dor física. O abandono. A solidão. É tão certo, tão palpável. É seguro. Um medo no qual se pode confiar.
Nem sempre fui tão valente, e olha que eu nem sou tanto. No gênero dos filmes de terror, existem nichos onde você pode se esconder e se sentir seguro. Fui começando por esses, até achar o meu lugar. De certa forma, é como escolher qual medo enfrentar, sabendo que existem vários, sabendo que você tem quase todos.
Esse em especial era um crescendo rítmico, tribal. Midsommar enganava por ser terror à luz do dia. Todo mundo disse isso, mesmo assim eu fui. De olhos bem abertos, esperei o choque chegar. E ele veio. Um grande susto, o homem se joga no vazio, uma cena de grande impacto. Assim como Dani, fecho os olhos porque já sei o que vai acontecer, e saber já é assustador o suficiente.
Existe o som, que confirma o meu medo. Abro os olhos, um segundo depois. Ainda é possível ver. Arregalo os olhos para ver tudo. Se quero tanto ver, por que os fechei no momento principal? Isso é tudo o que aguento.
Mas é um medo seguro, como eu disse. Quando o filme termina e as luzes se acendem, é como descer de uma montanha-russa.
Foi aterrador, sim. E estou pronta para fazer de novo.
POR QUE É TUDO SOBRE ESSAS HISTÓRIAS
A madrugada sob o olhar de Danny Zuko, todas as lágrimas que Elio não pôde conter, a angústia de olhos fechados de Dani. É tudo sobre essas histórias, mas é mais também.
Eu navego por mundos diferentes, me isolo e me descubro. Quero estar onde esses personagens estão, não quero estar em lugar nenhum, quero estar aqui.
Cada história é uma repetição, eu vou mudando percepções e escolhendo sentimentos. Respiro fundo, olhos abertos. Vamos de novo?
Sempre. Até o fim da vida, enquanto houver uma história a ser contada, o brilho da tela me encantando e me cegando, lá eu estarei.
1 comentário
shaun_levin
Professor PlusOi Tati, gostei muito de ler isso! Eu amo todas as camadas da história e como você usa seu amor por filmes para contar a história de outros relacionamentos. O "filme" da jovem e seu pai assistindo filmes juntos é maravilhosamente cinematográfico. Também gosto daquele momento em que você sai do cinema e fica pensando em compartilhar um momento tão íntimo com todos os outros na plateia. Um texto íntimo sobre as maneiras como compartilhamos histórias e carregamos histórias conosco - da próxima vez, peça o pôster! Obrigado por compartilhar seu projeto e por participar do curso :)
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