Yes, Cuscuz
de Veronica Favato @veronicafavato
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Estava sentada na areia, a pazinha verde de plástico pavimentava a estrada para o castelo bege cristalino. Olhava para as ondas, com medo que invadissem o fosso, afogando meus bonecos de Playmobil.
Ao meu lado uma garotinha loira de cachinhos, fazendo o mesmo. Seu rosto tinha faixas brancas de protetor solar, ela de camiseta manga longa, a pele translúcida e fina resplandecia ao sol.
— Somos princesas vizinhas. Que tal a gente fazer uma estrada entre os reinos?
Ela me olhou, sem entender. Peguei minha pazinha e tracei um caminho entre nós.
Ela sorriu com os dentes de leite em serrinha.
— Friends — ela disse. Eu repeti, como um papagaio.
Logo mostrei à minha amiga a técnica de fazer janelinhas com palitos de picolé.
— Nice — ela pronunciou, unindo o indicador e o polegar em círculo. Eu repeti o gesto.
Lembrei-me do primeiro dia da aula de inglês. Minha mãe só sabia falar “What’s your name? My name is”. Frases que acabei repetindo durante dias, até ela me colocar no banco de trás do carro e me levar para a primeira aula. A professora me fez a mesma pergunta quando me viu entrando na sala, respondi, me sentindo nativa, com todo aquele vocabulário de duas frases.
Como ainda não sabia ler, minha prova era circular o desenho falado pelo gravador. Meu dever de casa incluía colorir o livro e repetir o alfabeto. W era um M de cabeça para baixo. Z de zebra. Y de yes. Voltava para casa entoando as canções aprendidas. Minha mãe já não entendia o que eu falava. Quando queria deixá-la irritada, bastava responder em inglês. Era a minha fala secreta.
Uma onda violenta despedaçou-se, espatifando nossos reinos. Eu queria chorar, mas ela deu risada, pulando sobre os montes, caminhando pelos fossos destruídos, como Godzilla se divertindo com os minúsculos humanos. Juntamos os brinquedos no baldinho e corremos em direção ao mar, desviando das pernas que cruzavam nossos caminhos.
Coloquei a mão no peito:
— My name is Veronica.
— Nice to meet you. My name is Ana.
— Ana — repeti. Sim, eu Tarzã, você Jane, únicas pessoas relevantes na floresta, pensei.
Rolamos na areia como rocamboles açucarados. Ela se deitou, eu a enterrei, deixando a cabeça para fora.
— Now you — ela pediu sorrindo.
Eu me cobria de areia, só meus óculos de sol em formato de flor ficaram para fora, junto com o nariz. Gritei, bum! Joguei toda a areia para cima, o tatu saindo do buraco. Sim, eu era um bicho no buraco, minha infância passada no quarto, longe do mundo exterior, sem amigos.
— Boom! — ela exclamou, libertando-se e correndo em direção às ondas. — Let’s go!
Ana parecia ter colocado o dedo na tomada, não parava um minuto. Naquela época ainda não se falava em energia solar. Acho que ela foi o primeiro experimento bem sucedido.
Pulávamos como lambaris, enfrentando as brumas, até que o nível da água atingiu nossos ombros. As ondas cada vez maiores nos engoliam. Ela continuava adentrando rumo ao horizonte.
— Stop! — agarrei-a pelo braço, e com todo o meu vocabulário do primeiro ano, gritei — No!
Uma grande onda veio, puxei-a para baixo. Na segunda já não tivemos tanta sorte, ela nos levou, mas eu mantive meus dedos firmes em seu bracinho fino. Rolávamos em direção as areias. Ela levantou-se e tossiu, vomitando água.
— Again! — Fingi não entender sua intenção. Decidi puxá-la rumo à areia, ela se debatia.
Nossos pais já estavam no raso, procurando por nós. Minha mãe gritava, dava bronca. Os pais da Ana, um casal de loiros, ele de short de bolinha e camisa de coqueiro, ela de biquíni grande, chinelo de salto e chapéu rosado.
— Cuscuz — gritei, apontando para o rapaz que passava com o tabuleiro na cabeça.
— Cuscuz?
Ela se deliciava com a mistura de coco, lambendo os dedinhos. Tinha leite condensado no nariz.
Meu pai conheceu os pais dela, minha mãe quieta vendo revista feminina.
Ana foi meu primeiro intercâmbio cultural.
3 comentários
shaun_levin
Professor Plus@veronicafavato Oi Veronica, você capta lindamente a forma como as crianças fazem amigos. Há uma compaixão gentil na história, que combina muito bem com a vingança da menina contra a mãe usando o inglês. De certa forma, a história também parece ser sobre linguagem. Além disso, gosto muito dos pequenos desenhos em torno de sua página de brainstorming. A imagem da mãe lendo revistas no final é ótima, talvez um sinal de que ela está mais interessada em imagens do que em linguagem. É uma boa história, e minha única sugestão seria expandi-la, escrever mais sobre a mãe, mais sobre a narradora e a Ana, quem sabe continuar até eles saírem da praia. Acho que há algo fascinante nessas trocas culturais que temos quando crianças e que podem deixar sua marca em nós, mesmo que nunca mais vejamos a outra pessoa. Um prazer ler sua história. Obrigado pela sua participação no curso. Tudo de bom para 2023!
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veronicafavato
@shaun_levin Obrigado por sua gentil revisão. Você é um excelente escritor, e eu amo seus livros. Estou esperando por mais versões do Kindle. Saudações de São Paulo! @veronicafavatoescritora
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shaun_levin
Professor Plus@veronicafavato Obrigado!
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