Meu projeto do curso: Escrita de narrativa original do princípio ao fim
por Nádia Regina Almeida Manzon @nadia_noticia
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A visita
Por Nádia Almeida
Quando nasceu, ele parecia um pequeno repolho. Não consegui ver nada de bonito em seu rosto diminuto, enrugado e pálido. Ele chorou, eu quis fugir. Não da responsabilidade perante um ser dependente de tudo, mas da imobilidade da cirurgia. Era estranho estar atada à maca, ver e ouvir e não sentir, a respiração do anestesista por trás da máscara azul. O campo cirúrgico parecia um céu pós-apocalíptico. A enfermeira o trouxe a mim, tinha os olhos semiabertos, senti um leve cheiro amanteigado, mas posso ter imaginado. Na véspera completara dezesseis anos e ainda dormia rodeada por bonecas. Agora tenho diante de mim esse senhor de nariz adunco e fala arrastada. Seus olhos castanhos vagam feito pirilampos, disfarçam, mas iluminam falhas no meu discurso de frases abreviadas e estanques, perscrutando os movimentos mais sutis da minha boca insegura, como fazem os surdos. O castanho de terra molhada de seus olhos encontra o azul gelatinoso dos meus; por um segundo eles parecem se chocar como água barrenta que invade um braço de mar. Fujo desse escrutínio, examinando em detalhes o buraco no reboco da parede onde havia um prego grosso que caiu, partindo o retrato do santo.
Esse senhor veste uma camisa muito branca, imaculada mesmo, cuja gola está perfeitamente passada, decerto por uma mulher. Sei disso porque somente uma mulher sabe passar tão bem uma gola, de modo que concluo que, se ele se apresenta assim tão bem cuidado, talvez tenha uma filha amorosa ou uma empregada fiel e maternal das que mimam os patrões, porque não vejo aliança na mão esquerda, só marcas do tempo. Pouso o olhar na barriga que comprime o cinto, que é de couro bom, preto, combinando com os sapatos de bicos alongados. Bem se vê, tem recursos. A calça cai suave pelas pernas dobradas, tecido bom, gabardine, chumbo, risca de giz, deve fazer par com o paletó deixado no carro porque o ar de outubro é abafado; mesmo com as janelas escancaradas, o tempo parado não mexe uma folha. Parece que vai chover.
Sirvo chá mate com biscoito de feira. Fico pensando se usa adoçante, daqueles adoçantes de lojas de produtos naturais, ou se é diabético, sofre de alguma doença crônica ou segue dietas da moda. Só quando tirei os saquinhos do bule percebi que nem perguntei se preferia café, quanta indelicadeza. Tem café no pote, mas é ruim, muito torrado, gosto de serragem, café barato não conta, melhor o mate. Com açúcar ou sem? E se sim, com quantas colheres? Duas, ele é sucinto. Coloco as colheres de açúcar branco, ordinário, e minha cabeça gira com a colherinha. Adoraria ter demerara ou mascavo, mas sou uma mulher comum cujo armário contém açúcar refinado empedrado e café que escolhi pelo preço. Lembro do chá preto, a granel, já vencido, cheirando a bolor. Tivesse dinheiro teria feito uma compra especial para a ocasião, mas agora é tarde. É tarde para muito e o vejo bebericar sem vontade.
Silêncios me incomodam e troco as pernas de lugar. Não há histórias divertidas, de modo que se faz um certo constrangimento. Insisto nos biscoitos da feira, pegue um, são caseiros. Crianças comem biscoitos, elas gostam de ajudar a modelar, bolear a massa, enfeitar com castanhas quebradas com suas mãozinhas sujas de corante líquido, é o que a gente vê nos filmes de Natal. As pessoas costumam armar árvores douradas. Aqui no cortiço nunca vi pisca-pisca nem bolas brilhantes, nenhum boneco vermelho, muito menos biscoitos de castanha. Vejo, sim, crianças magras e descalças, as mais novas arrastadas pelas escadas por adultos grosseiros, as mais velhas segurando no colo bebês fedendo a urina. Todas maltrapilhas, amareladas e de mãos ásperas.
Aquelas mãos que seguram a xícara de chá pertencem a um homem feito que deve usá-las para assinar cheques, virar páginas, apertar teclados, ajustar gravatas. Ele agradece com educação o biscoito, vê-se o tanto que é cortês, recusa com firmeza a oferta, aperta a asa da xícara. Percebo que troquei o pires e de repente me envergonho, a voz some no meio de um comentário qualquer. A xícara que ele segura é de florzinha azul e o pires branco faz par com outra xícara, a branca, a xícara que costumo oferecer aos mais simples, ao entregador de gás, ao eletricista. Às visitas mais importantes ofereceria chá importado no conjunto floral rosa que ganhei de uma cliente que trouxe da Itália, aquele que guardo em cima do guarda-roupa, agora esse pires de florzinha azul não sei onde foi parar. Não estava atenta, troquei sem querer. O tremor no corpo me entrega, escancara a vergonha feito o janelão que dá para a rua, expõe o erro e meu rosto enrubesce. Ele finge não ver. Sorve o líquido sem qualquer ruído e a sala parece ter envelhecido séculos, como se sua presença grande revelasse cada mancha e rachadura que passou despercebida todos esses anos. Até o busto revestido de malha cravado de alfinetes, sem cabeça nem membros, me parece grotesco. Reparo numa mancha ovalada no braço da poltrona, de café talvez, e o tecido esgarçado que reveste a almofada. O tapete que um dia foi vermelho, a mesinha redonda riscada, a velha máquina de costura preta exibindo as marcas de sua existência febril, tudo me parece patético demais, insuportável. Desejo sumir com as revistas de moda, retalhos, tesouras, fita métrica e a profusão de potes de carreteis, queria que tomassem vida e se jogassem pela janela, um atrás do outro, mas eles continuam lá como tristes palhaços, fazendo todo o cenário parecer ainda mais ridículo.
Terminado o chá, ele pede para ir ao banheiro. É por ali, digo, só seguir o corredor. O relógio de parede segue o ritmo arrastado. Fico ao lado da porta dura como sentinela, assaltada pela imagem do banheiro. Será que joguei a calcinha suja no cesto ou a deixei pendurada atrás da porta? E o sutiã rasgado, onde foi que enfiei? Moro sozinha há tanto tempo, quase ninguém passa da sala que transformei em ateliê de costura, nem mesmo as clientes, que pararam de vir quando comecei as crises. Só recebi o encanador para consertar um vazamento, mas isso foi antes do carnaval passado ou depois da Páscoa, não lembro. Ao som da descarga, corro para a cozinha. Ele não vai se perder.
Quando volta à sala e assume o mesmo lugar percebo que seus olhos estão levemente rosados. Usa óculos, então pode ser cansaço da vista por muito trabalho, não compreendi bem, acho que mencionou aposentado numa fábrica de automóveis e fiquei sem saber se se aposentou pela fábrica ou se, aposentado, ainda trabalha na fábrica. Ele pergunta algo que não lembro e se agita, decerto para ir embora, mas permanece na poltrona como se resistisse a sair sem dizer a que veio. Não lembro, respondo, e minhas mãos tremem ao tentar alcançar a xícara, tremem mais quando tocam, de raspão, a pele quente de seu antebraço, parece que queima, e a xícara vazia tomba.
Não lembro nada sobre o nascimento da criança, só o rostinho enrugado de repolho, não rugas tristes como a do senhor que tenho à frente e as minhas próprias, mas rugas puras de bebê. Ele pergunta com educação, e o médico? O médico? Não lembro e isso me deixa agitada na sala parada, não posso me obrigar a inventar um personagem como inventei que o biscoito mole da feira era caseiro. Há mentiras demais em nossas vidas. A verdade é essa, digo, não lembro. Ele não sabe e eu não digo que deixei de lembrar quando soltei a esperança como a corda de um balão que subiu e subiu, soprado pelo vento que nos falta agora a um destino outro que me fugiu completamente. Soltei o balão, que se elevou e o levou para longe.
Se faço ternos? Não, só roupas femininas, hoje nem isso. Uma pena, ele diz, contando que buscava um alfaiate para ternos sob medida, os de loja são tão... desconfortáveis. Ele ri de novo e algo de lua reluz. Esqueço o comentário, esqueço tudo, quando algo nele cintilou assim. Quando o bebê mamou vi a lua antes de a enfermeira baixar a persiana. Ele brinca, a barriga cresceu e os ombros não, seu rosto se suaviza, parece menino, de alguma forma parece o bebê. O bebê tinha penugem dourada e os cabelos fartos e os daquele senhor são grisalhos, de modo que é impossível saber se um dia foi louro.
Levo para a cozinha a xícara vazia e o biscoito intacto, podia tentar fazer o terno para ele. Aquele recorte de jornal da reportagem colocado na folha com data e título é o que eu tenho, sem espaço para abraços, beijos, afagos no cabelo agora cinza. Ele não sabe, mas o quarto de bebê permaneceu em espera por trinta anos. Não sabe que costurei todos aqueles bichos de feltro na esperança de que o distrito policial que eu procurava toda semana, depois todo mês, me desse uma pista. Sequer imagina que onde está na poltrona havia um berço com lençol verde. Na cabeceira do berço lia-se o nome que escolhi. Samuel.
A repórter falou outro nome. Afonso. Infelizmente para ela, não consegui chorar frente às câmeras. Os holofotes me cegaram e eu nada disse quando me contaram o encontro do meu filho desaparecido havia 59 anos, três meses e quinze dias. É porque não sobrou lágrima, só vazio. Até deixei de ler jornal e ouvir rádio, soube da notícia porque a repórter veio aqui.
Volto à sala, olho fundo para o homem sentado e digo: lembro. Lembro do dia, 20 de dezembro, do rosto de repolho e cheiro de manteiga, do céu azul, da lua e da mulher de máscara que o levou de mim, puxando-o quando ainda mamava o colostro. Seu nome era Samuel.
O senhor grisalho parece pensar. Depois beija minha mão e se despede. Sopra uma brisa antecipatória do janelão enquanto ouço seus passos na escada. Sou âncora. Começa a chover forte, uma chuva verde. Ele não tem capa de chuva. Levanto-me, sobressaltada. Ele não tem capa de chuva! Como pude? Pego o guarda-chuva preto atrás do mancebo, desço os degraus segurando no corrimão engordurado e saio à rua a tempo de ver alguém dobrar a esquina. Sigo rápido pela calçada, mas as pernas não ajudam, olho ao redor e não o encontro em parte alguma, estou tonta. A chuva torrencial desaba mais forte ainda. Chora sobre mim todas as lágrimas, inunda a blusa de mangas três quartos, a saia, inunda-me a alma, castiga-me. Relâmpagos, trovões e a enxurrada lava o mundo. Como pude deixá-lo escapar sem aquelas três palavras, sem capa nem guarda-chuva, sem alfaiate, sem memória nem história, sem canções de ninar. Fico assim abobalhada na calçada e grito a plenos pulmões: Samuel! Afonso!
Não sei quanto tempo fico na sarjeta, ignorando as poças que os carros atiram para todos os lados, até decidir voltar. A tempestade acalmou, a lua talvez surja e eu só. Empurro a entrada do prédio e arrasto meu corpo pelos degraus da escada, um a um, até chegar ao apartamento, arfante e vencida. Pela porta entreaberta, posso vê-lo ali, no centro da sala, onde antes ficava o berço e agora fica a poltrona do lado do busto alfinetado. Posso vê-lo trêmulo, molhado e encolhido feito o bebê que parecia um repolho.

2 comentarios
harrison_hakanen
Empecé a leer el texto, y no me impresionó, lo encontraba aburrido, miré el resto del texto y pensé "¡guau, todo esto!" Cuando lo vi, ya estaba al final del texto, y muy emocionado. Conseguiste poner muy bien todos los detalles, y la historia en sí del cuento estuvo muy buena, es ese cuento que te engancha por el misterio.
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nadia.noticia
@harrison_hakanen gracias! A veces pienso que mis textos son largos y detallados, pero pienso con emoción y la emoción tiene sus formas. ¡Gracias por tu comentario! Es realmente genial saber lo que sienten quienes lo leen y me alegró que te conmoviera el texto. Es un incentivo. ¡Éxito!
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