Fernando, Um Franguinho Urbano.
por Kirk Costa @dionikirk
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Fernando, Um Franguinho Urbano.
Kirk Costa
1 - Como tudo começou.
Bem na véspera da Páscoa do ano de 2006, a Professora Luzia resolveu presentear seus alunos da 4ª série. Contudo, ao invés do tradicional ovo, quis brindar-lhes com algo diferente, com os próprios pintinhos, para celebrar e simbolizar a vida. É verdade que ficou receosa. Temeu que os meninos, quem sabe, pensassem que ela virou o juízo, pois para eles Páscoa seria chocolate e, de repente, não receberiam bem os pintinhos.
A professora tirou com carinho cada um dos trinta pintinhos da caixa de papelão que veio da casa de produtos veterinários. Colocou-os um a um numa caixa de sapato. Cada um numa caixa, entende? Caixa que havia previamente pedido aos alunos, sem que soubessem para que seria. Imagine o alvoroço dos pintinhos. Imagine o alvoroço da criançada.
Na caixinha enxadrezada em preto e branco a professora colocou o que pareceu o pintinho de olhinhos mais espertos. Ele não contava nem com uma semana de vida. Na caixa lia-se em dourado: “Aluno: Otávio”. É desse pintinho de olhinhos espertos que quero falar, porque parecia mesmo diferente.
Ele entrou na caixa com muita expectativa. Sabia que iria para algum lugar. Tendo nascido numa chocadeira, nunca conheceu nada do mundo. Quando foi para a casa de produtos veterinários, da gaiola ele viu o que eram ruas, cachorros, pássaros, gatos. Mas viu de longe, era muito pouco. Isso até a mulher de cabelos vermelhos resgatá-lo, juntamente com seus companheiros.
Quando a caixa de sapatos enxadrezada foi aberta, isso ainda na sala de aula, o pintinho conheceu seu dono, o menino Otávio, que o olhou sem muito interesse. Nariz arrebitado, pescoço torcido ora para um lado, ora para o outro. O pintinho repetiu o gesto; mas o menino não percebeu. Talvez houvesse decepção no menino, por preferir chocolates.
Já em casa, no quintal o menino Otávio abriu a caixa e soltou o pintinho. Que alegria a do pintinho. Livre pela primeira vez. Querendo agradar ao menino, ele começou a abanar as asinhas, a correr, correr. Ele andava de um jeito molenga, o que fez o menino recordar-se de uma amiga que também andava assim. A Fernanda. Então o menino entendeu que o pintinho deveria se chamar Fernando. Começou a falar com ele como se ele entendesse. Às vezes o pintinho corria atrás do menino. Às vezes era o contrário, o menino é que corria atrás do pintinho, gritando: Fernando, Fernando, Fernando. O Fernando, vendo que agradava, continuava a correr. Notou facilmente que Fernando era seu nome. O menino fazia que ia alcançá-lo; mas não o alcançava. Sorria, sorria, sorria. O pintinho piava, piava, piava. Pios dourados de puro contentamento, sabe.
Foram momentos de alegria. A mãe do Otávio não soube o que dizer, pois não tinham quintal de terra, para que pudessem criar o pintinho. Contudo vendo a alegria do filho, tinha que ceder. Desde a primeira noite o Fernando dormiu no quarto do Otávio, na caixinha xadrez. Se o deixassem no quintal ele piava, piava, como chorasse. Onde ia Otávio, lá estava o Fernando atrás, bicando-lhe os pés como o beijasse, como dissesse que queria brincar. Como sabemos o pintinho nasceu numa chocadeira. Nada sabia sobre mãe ou família. O Otávio lhe era a família.
Com um mês de vida e comendo tanto naquele quintal ladrilhado, comendo principalmente comida de humanos, e Fernando já era um franguinho grande. Alcançava a altura da metade de um frango adulto. Então seus cocoricores eram mais intensos, e caía também outro problema. Ele fazia cocô para todo lado. E era cada cocozão explodindo no chão: Plocc... A mãe do Otávio exigia que ele limpasse; mas ele era muito nojento. No começo até que aceitou a missão; mas logo desistiu e acabou sobrando tudo para ela. Era uma confusão daquelas porque ela ficava muito brava.
Para piorar, o Fernando aprendeu a subir na casinha do bojão de gás e saltar até a janela da cozinha, e então entrava em casa até quando o trancavam no quintal. Ia para dentro com aquele jeito moleirão dele de andar, aninhava-se no sofá, no canto do Otávio, que lá ficava por horas depois da aula vendo televisão. O menino gostava daquilo. Às vezes até fazia um carinho no mais alto da cabeça do Fernando, que amava o carinho.
2 - Mudanças.
Por tudo isso e outras que aqui não cabem, pelo pouco espaço, a mãe do Otávio decidiu. Mandaria o Fernando para a casa dos sogros, que moravam num sítio. O Otávio entristeceu-se com a ideia, a princípio. Mas depois dos argumentos do pai, de que na roça o Fernando faria amigos e seria mais livre e feliz, o Otávio cedeu.
Alguns dias depois, era sábado, e levaram o Fernando para a roça. Soltaram-no no grande terreiro. A vó bateu palmas. O vô tirou o chapéu o coçou a cabeça. O Fernando pareceu inseguro, procurou o Otávio, que lhe fez um gesto com uma mão. Como dissesse vai, vai. Fernando não compreendeu. O menino desprezava sua amizade?
Foi então que Fernando viu muitas flores e borboletas, num canto próximo. Foi até lá. Distraiu-se. Deu-se conta de que se encontrava na terra. Na terra... Ele não conhecia terra, já que o quintal onde vivia era ladrilhado. Ele começou a ciscar. Que delícia que era ciscar terra! Que sensação boa nas pernas. Que cheirinho bom. Aí ele viu grilos, joaninhas, minhocas. Ele comeu uma minhoca. Que delícia! Até de bicar o capim ele gostou, comendo as pontinhas verdes.
Quando o Fernando deu por si, não via mais o Otávio e nem humano algum. “Depois eu o procuro”, pensou. Estava tão bom ali. Foi aí que algo o assombrou demais. Vieram-lhe à direção outros frangos, galinhas e um galo. Embora não conhece, ele bem identificou aqueles como da sua espécie. Ele entendia o que cocoricavam. O grande galo de pescoço acobreado e esporas poderosas chamava-se Alcides. As galinhas eram branquelas, pretas ou carijós. Umas até do pescoço pelado. Algumas vinham cercadas de pintinhos. Que bonitinhos! Elas diziam cruq, cruq, cruq... que queria dizer vamos, vamos, vamos. Também se via, mais distante, frangos e frangas adolescentes como ele.
Fernando não sabia o que fazer, como se comportar. Apenas sabia lidar com “os jeitos” do menino Otávio. Quando estava alegre, triste. Quando queria brincar. Quando ia lhe alimentar. “Ih irih iiiiiiiiiiiih!” O Alcides cantou. Fernando já tinha ouvido um galo cantar, lá na casa do Otávio; mas de longe, pelas vizinhanças, sabe. Impressionou-se com a força do canto do Alcides. Achou bonito e imponente; mas sofreu um pouco de medo.
Uma galinha gorda e simpática aproximou-se dele. Dirigiu-lhe algumas palavras carinhosas. Disse se chamar Carmona. Não houve tempo para muita conversa. Apareceu o vô Tadeu, era o nome do avô do Otávio, com um bastão na mão. Fazia um barulho engraçado com a boca. Um barulho repetitivo. Tititititititititiiiiii. Fernando viu que mansamente as galinhas, galos, frangos... todos eles, em resposta ao comando puseram-se a encaminhar como fossem para algum local. Após tirar o chapéu e coçar a cabeça, o vô Tadeu abanou as mãos e fez de uma forma mais intensa aquele barulho, para os lados do Fernando, que seguia imóvel. Ele não sabia o que fazer; mas, enfim, resolveu seguir a turma. O vô voltou o chapéu para cabeça, acalmou-se. Parece que era aquilo que ele queria.
Nisso o sol já se punha e Fernando percebeu-se sonolento. Na cidade isso também às vezes acontecia; mas quando acendiam as luzes elétricas seu sono passava. Ali, ao ar livre, a única lâmpada no céu era o sol. Decerto a noite já vinha. Como seria passar a noite ali. Pensou Fernando, trespassado por uma onda fria de horror. Olhou ao redor. Não distante da casa erguia-se vários capões de mato. Que tipo ameaças viriam dali, principalmente à noite?
3 - O novo quarto.
Seguindo o bando, chegaram num local cercado. Cheio de pequenas árvores redondinhas verde escuro. O que seria aquilo? Ele pensou. A D. Carmona disse que eram árvores de café. E que não nasceram sozinhas. Era plantação do humano. O Otávio gostava de café, pensou Fernando. Ele se lembrava do cheiro quando a mãe o Otávio preparava o café. Ele nunca experimentou, pois, algo líquido e quente era complicado para um franguinho. Mas ali, em fruta, seria possível. Ele experimentou. Gostou. Percebeu-a docinha. Como aquela frutinha vermelha virava o café que o Otávio tomava? Pensou Fernando. Cortou-lhe o coração a noção de que o Otávio o abandonara.
No cafezal, logo na entrada e a direita, Fernando viu uma espécie de casa. Era engraçada. Tinha telhado de casa; mas parece não havia parede. Que esquisito! Seguindo a turma e se aproximando mais ele notou que sim havia paredes. Eram como que furadas, feitas de um arame trançado que os humanos chamavam tela. A parte coberta por telhas era apenas uma parte. Acima daquilo tudo, englobando até a parte telhada, também corria uma malha de tela, fazendo aquilo lembrar um gaiolão. Um gaiolão muito maior que a casa do Otávio.
Fernando lembrou-se da gaiola onde morou antes de conhecer o Otávio. Ele não gostava de lá. Mas ali era diferente, logo viu. Chamavam aquilo de galinheiro, ele soube depois da D. Carmona. Era proteção. O vô os deixava ali a noite, abrigados do perigo. De manhã os libertava outra vez. E tinha que mesmo ali, com aquele espaço todo para caminhar, ciscar, sentir a terra, não era caso de comparar à gaiolinha da casa de produtos veterinários.
O galinheiro era tão grande e alto que lá dentro cresciam touças de capim e até uma goiabeira. Goiabeira até que grande. Quando entraram lá, todos eles, o vô fechou a porta. O Fernando viu que ali gotejava água numa espécie de bacia de madeira. Que delícia. Ele não tomara água o dia todo. Até se esquecera. Bebeu fartamente. Gostou também de pisar no brejo que fazia em volta. Ali não havia preocupação com chão limpo, como na casa do Otávio.
4 – As surpresas da primeira noite.
Nesse ponto o sono de Fernando apertava-o de vez. Com pálpebras molengas ele se viu sozinho chão. Nem o vô se encontrava mais ali. Que coisa esquisita! A turma ia subindo pelos galhos mais altos da goiabeira. Cada um parecia ter um lugar cativo. Com tantos poleiros e caixotes embaixo, por que se arriscar numa altura daquelas? As galinhas de pintinhos logicamente não subiram. Os pintinhos não conseguiriam; mas foram alojadas pelo vô numas espécies de caixotes menores lá dentro. Eram como o armário da cozinha da casa do Otávio. Contudo ao invés de uma porta apenas, cada prateira tinha sua porta, e em tela, que ali se via trancadas. Por que o vô as trancava se a porta do galinheiro já estava trancada?
Mas o sono de Fernando naquele ponto era tanto que não conseguia mais pensar. Ele mal teve forças para se dirigir rumo a um caixote-ninho. Era quentinho e fofo; mas seria melhor estar no quarto do Otávio, na caixinha enxadrezada forrada de trapos e com cheirinho tão bom. Ele não entendia como aqueles na goiabeira, expostos ao vento, desprezavam aquela gostosura de caixote-ninho. Seria por serem caipiras e não saberem nada da vida, sobre conforto?
Fernando desconheceu o derradeiro pensamento que lhe cruzou pela mente. Simplesmente desligou-se, já em sonhos de brincadeiras com o Otávio. Lá pelas tantas da madrugada, ele despertou. Pareceu ouvir um barulho. Seria sonho? Ele abriu bem os ouvidos, deixou de respirar por um instante. Não achou nada além do correr do vento da madrugada. Notou um pedaço de céu. Achou bonito. O céu da roça é diferente do céu de cidade, pensou, é mais vivo. As estrelas cintilando lhe lembraram as bocas dos peixinhos à venda no aquário na casa de produtos veterinários.
Decerto foi barulho provocado pelo vento... e tem também que, seja como for, estou num local fechado, pensou Fernando ajeitando-se no ninho e fechando os olhos outra vez. Mas não era vento... O ruído aconteceu novamente. Era real. Fernando sentiu o coração crescer no peito. Ele chegou a ouvir o tuc, tuc, tuc nos ouvidos. Aquilo não estava certo. Arranhavam qualquer coisa por perto. Fernando cresceu o pescoço para ver melhor. Deparou-se com uma criatura dentro de galinheiro.
Mas... mas como viera parar aqui dentro? Pensou Fernando, acreditando que fosse um cachorro. Um cachorro pequeno, magro e focinhudo. Lembremos que ele era inocente em relação a questões do campo. Mas eis que ele escutou os frangos lá em cima. Esconjuravam um cocoricar de alerta. "Err""err". Alguém acrescentou, num cocoricar desafinado: é a raposa, é a raposa... Fernando compreendeu. A raposa viera para sua ceia noturna. Por isso os frangos lá em cima... Por isso as galinhas fechadas...
E agora? Pensou Fernando. Embora, fosse como fosse, ele nada pudesse, congelado, pescoço recolhido. A raposinha cheirou, cheirou. Olhou, olhou. Ronronou. Sumiu como veio. Fernando não conseguiu dormir mais naquela noite. Isso aconteceu muito antes do Alcides anunciar o novo dia. Quando ele cantou, ih irih iiiiiiiiiiiih, o Fernando sentiu o coração vir a goela, tamanho o susto. Quando amanheceu de vez, ele se sentia aéreo e distante, como houvesse bebido água velha. Ele procurou apurar melhor a história da invasão da raposa. Constatou que a turma não queria tocar no assunto.
Cocoricando-lhe baixinho, a D. Carmona explicou-lhe que as raposas apareciam ali de tempos em tempos. Não parecia ser apenas uma. Que se fosse ali naquela madrugada a raposa mais violenta, a da cor alaranjada, ele não escaparia vivo. “Mas o que fazem para impedir”? Indagou Fernando. “Não há o que fazer. Somos frangos, lembra-se? O jeito é nos enroscarmos o mais alto que podemos nos galhos da goiabeira”. Disse Brisa, uma franguinha, que passava. “Por que o vô não faz algo”? Acrescentou Fernando, estufando os olhos. “Você quer dizer o humano”? Perguntou Brisa. Fernando fez que sim com o bico. “Ele não sabe. Embora receie, pois do contrário não trancafiaria as galinhas de pintinhos”. Completou Brisa de um jeito debochado.
5 - Um novo dia.
Com o sol, a companhia de Brisa e também de outro franguinho de nome Penacho, um sobrinho de D. Carmona, o Fernando passou bem o dia. Os frangos não são como os humanos, que ficam remoendo, remoendo as coisas na cabeça. Brisa e Penacho eram divertidos. Interessaram-se pela história urbana dele. Pelo meio do dia ele conheceu os irmãos índios. Tinham aspecto rude, com pescoço pelado e penas até nas pernas e pés. Eram da raça índia, disse Penacho. Eram seis franguinhos. Todos parecidíssimos. Chegaram com cara de poucos amigos, chamando Fernando de trouxa da cidade, e que era para ele, Brisa e Penacho saírem dali do gramado. Que eles queriam ficar ali. Fernando lógico que não iria sair. Não sentiu medo algum dos atrevidos. Ele como sabemos não tinha família, então desconhecia isso de autoridade. De pai que controla o terreiro, de irmãos mais velhos que se impõe sobre os mais novos, da mãe que aquece e defende.
Contudo, por fim, vendo que Brisa e Penacho saíam e, ao saírem lhe fazerem um sinal com os olhos, Fernando também partiu. Já, já corriam felizes atrás de escorpiões e nem se lembravam do acontecido. Gargalharam de rolar no capim ao notarem que uma franga botou no mato num ponto e foi para um outro para gritar seu boc boc boc borooooc... boc boc boc borooooc... Que é o som que imitem depois que botam um ovo. Isso fazia para enganar os humanos. Para que não soubessem onde botava.
6 – Que vacilo!
Por fim, sem saber porque e em que momento, Fernando separou-se de Brisa e Penacho. Ele apenas se deu conta quando, já com o papo cheio de gafanhotos e minhocas, ouviu um som de perigo das galinhas que lembra miado de gato. Elas corriam, corriam, e se escondiam. Ele se desesperou, não entendia. Então passou por ele um lagarto correndo. Decerto o alerta era pelo lagarto, que abocanha ovos, pintinhos e até franguinhos. Que criatura horripilante. Fernando afundou-se numa espécie de túnel, coração disparado como o tropel de um potro doido na estrada. Foi a primeira entrada que lhe surgiu.
Pobre Fernando. O problema não era o lagarto. Aliás, o lagarto também fugia do problema. Por aquele duto de manilhas vinha toda água de chuva do terreiro de secar café, passando por debaixo da casa. O alerta das galinhas era de chuva próxima. Chuva não, temporal. O quadro evoluiu rapidamente para muita água, vento e explosões no céu. Quando Fernando deu por si, era levado pelo mundaréu de água, que revirava-o, empurrava-o. Lançado fora do túnel, ele seguia rodando no canal de enxurradas lateral a uma estrada. Ele se afogava, óbvio. Não conseguia agir. Tudo rodava, rodava. Quem o socorreu foi Penacho e D. Carmona, que nisso se arriscaram também, indo buscá-lo num ponto onde a enxurrada atravessava a galhada quase seca de uma paineira caída no mês anterior. A Brisa ficou nervosa e assustada, vendo de longe. Fernando sobrou deitado, tossindo. Trouxa! Trouxa! Cocoricaram os irmãos índios.
7 – Já noite outra vez.
Ao final de tarde, já passada a chuva e recuperado o Fernando, tudo aconteceu igual na véspera. O avô apareceu com a vara na mão e todos foram se encaminhando ao galinheiro. Já lá dentro, secretamente o Fernando pôs-se a investigar como a raposa poderia ter entrado. Não havia furos na tela. Por cima também não se via acessos, bem como seria impossível a raposinha chegar lá. Como podia? Que mágica era aquela?
Acontece que já escurecia e Fernando pensou que desta vez deveria buscar um galho de goiabeira para ele também. Naquele ninho era capaz que não tivesse a sorte da véspera. Então ele foi pulando, pulando, galhos da goiabeira acima. Desviava de um e outro. Quando estava para achar um lugar vago, um dos irmãos índios passou-lhe uma rasteira. Que tombo! Ele desabou lá de cima. Esborrachou-se numa touça de capim. Teve que bater muito as asas, para tentar amortecer a queda. Mas a experiência não foi de toda ruim. Na touça ele encontrou a novidade que já-já falo.
Meio mancando e zonzo, ufa, dois acidentes no mesmo dia, e Fernando buscou subir outra vez, puxando uma perna. Penacho lhe fez um sinal lá de cima, para que se fosse até lá. Ele foi. Agora com mais dificuldades que antes. Penacho e D. Carmona arredaram, ajeitaram-se. Enfim, dividiram espaço com Fernando, que mal lhes agradecia e já dormia, ressonando sibilado.
8 – A investigação.
No outro dia Fernando foi acordado pelo ih irih iiiiiiiiiiiih de Alcides, seguido do potente bater de asas. Que susto! Ele quase desabou do galho outra vez. Ele não gostava de acordar cedo, coisa que aprendeu com o menino Otávio. Mas como ali todos acordavam, então ele deveria segui-los. Até os pobrezinhos dos pintinhos acordavam cedo, mesmo piando mole e sem coragem para abrir totalmente os olhos.
Pela manhã Fernando não acompanhou a turma. Perdeu o momento mágico quando o vô lançava milho para eles. Não havia problema. Comeria gafanhotos e capim, pensou. Brisa ainda gritou, correndo: “vamos, Fernando. Vamos”. Ele fez um não com a cabeça, e, antes que acrescentasse algo, o Penacho disse “deixe de ser besta, galinho! Vamos!”. Os irmãos índios balançaram a cabeça dizendo em coro: Trouxa! Trouxa! Fernando não sentiu vontade de explicar nada. Para ninguém. Muito menos falar sobre o motivo, que seria investigar a história da invasão da raposa.
Sobre a novidade na touça de capim. Lembra? Falei há pouco. Era um furo no solo. Um furo como um buraco de tatu, recoberto por capim e pedaços de caibros e uma robusta ponta prancha de madeira. Madeira velha. Decerto ali ao acaso, por sobra de algum madeiramento de telhado. Fernando podia apostar que daquele furo embicava um túnel, com saída além das telas do galinheiro, e que por ali vinham as raposas. Estaria desvendado o mistério; mas o como tratar aquela informação?
Pelo entorno do galinheiro, ali no cafezal, Fernando Procurou, procurou. Não encontrou nada. Com o galinheiro aberto ele foi até o furo no solo, na tolça de capim. Resolveu enfiar-se para dentro dele. Vejam que juízo o dele. Sem pensar muito, ele foi avançando, avançando. A luz foi desaparecendo, desaparecendo. Apenas então lhe veio a noção de que poderia estar fazendo uma besteira.
Mas não havia como voltar. Arrastando-se como ia, não tinha como andar para trás ali. Ele receou que nunca mais visse o Otávio. Que nunca mais corresse atrás dos pardais no quintal. Que nunca mais comesse o arroz cozido da mãe de Otávio. Que nunca mais assistisse televisão. Morreria ali e ninguém jamais saberia o que aconteceu com ele. Poderia se entalar seriamente. Recuar era sem jeito. Para uma raposa era mais fácil ir e vir esborrachando-se com suas quatro patas. Para um frango não era tão simples.
Com alguma dificuldade, depois de uma meia hora Fernando saiu nas bananeiras próximas do córrego. Saiu cansado e ofegante. Ouviu alguns barulhos estranhos. Podia ser a água batendo nas pedras; mas também podia serem raposas. Ele se sentiu gelado. Melhor era deixar aquele lugar o mais rápido que conseguisse. O local era sombrio e com muitos caminhos tortos. Enquanto saía seus passos sobre as palhas secas de bananeiras produziam um ruído que ele não gostaria que acontecessem, pelo receio de ser cercado por feras.
Mal saía e do outro lado das bananeiras Fernando visualizou um quadro sinistro. Lobos atacaram um bezerro. Que confusão! Que horror! O vô precisava saber. Se bem que, pela cerca de arames além das bananeiras, podia ser que o bezerro não fosse do vô. Seriam terras de outro humano. Pelos berros de desespero do bezerro, não demorou e o vô apareceu correndo. Decerto estava por perto. Com um porrete batendo no chão ele acudiu o bezerro. Coitando do vô, até deixou cair o chapéu na corrida doida. Aproveitando-se da confusão Fernando correu como pode.
9 – A fuga.
No final do dia, mal o avô fechava a porta do galinheiro e virava as costas, e Fernando enfiava-se naquele buraco outra vez, para estranheza da galinhada. Ninguém jamais percebera aquele buraco ali. O medo de ser cercado por lobos, na outra ponta, era grande. Mas Fernando contou com a hipótese de que o vô havia os espantados.
Já era noitinha quando o Fernando apareceu na cozinha da vó, sujo. O vô ficou confuso, tirou o chapéu o coçou o alto da cabeça. A vó brincou com o franguinho como brincasse com o próprio neto. O Fernando arrepiou as penas e quando ia se agitar, para se liberar da poeira, recordou-se que humanos não gostavam de poeira dentro de casa. Então se conteve.
Como era muito manso e acostumado com os humanos, Fernando foi facilmente pego pelo vô. A vó disse que o coitadinho decerto estava com frio. Ventilou embrulha-lo numa velha blusa de lã e colocá-lo numa caixa de papelão, na taipa do fogão a lenha. “Deus que nos livre”, disse o vô. “Se esse frango se acostuma aqui, estamos lascados. Afinal não é por isso que o trouxeram? Ele é frango e tem que se acostumar o viver como frango”, completou. Mas que depressa o avô levou Fernando para o galinheiro outra vez. Pensou que quem sabe houvesse ficado de fora.
Fernando pensou em repetir o ato. Mas o dia já ia por um fio, turvo, e as corujas já piavam por perto mostrando que chegava a hora delas. Era melhor deixar. Os irmãos índios esculhambaram Fernando. Que idiotice era aquela de fugir. Ali era proteção e não prisão. Trouxa! Trouxa! E ainda mais trouxa por ser pego pelo humano tão imediatamente.
10 – O vô desvenda o mistério.
No outro dia a coisa se repetiu. Ou seja, Fernando fugiu e foi novamente parar na cozinha da vó. Acontece que desta vez o vô tinha certeza que o Fernando foi fechado no galinheiro. Semelhante ao dia anterior ele levou o galinho para o galinheiro. No terceiro dia o avô, após fechar a porta, ficou por ali, vendo se acontecia algo. Não demorou e deparou-se com o Fernando se enfiando ao capim e desaparecendo.
Foi assim que o vô descobriu o buraco. Selou-o muito bem selado, para isso se valente até de pedras, e desta forma o galinheiro livrou-se das raposas. Apenas aí entenderam Fernando, que de então adiante passou a ser estimado em alto conta pela turma, que viu que a experiência dele lhes trazia um jeito diferente de ver as coisas. Que tinham a lhe ensinar, sim; mas que eles também poderiam aprender com ele. Até o galo Alcides lhe deu os parabéns, balançando a crista e a barbela da cor de carne vermelha viva. Foi a primeira vez que lhe dirigiu o cocoricar. Inclusive lhe disse que o ajudasse a pensar numa estratégia para se livrarem do gavião, que rondava o entorno do terreiro por aquela semana.
11 - Novos tempos
Agora a turma não mais dormia nos galhos da goiabeira. Embora alguns seguissem com o velho habito, como os indigestos irmãos índios. Fernando voltou a dormir no caixote-ninho do primeiro dia, e acompanhado da franguinha Brisa. Lá dormindo com ela, sentindo-lhe o calor, ele não queria outra vida. Nem preciso dizer como se sentia felizão. Inclusive havia outro distintivo nessa questão. Fernando sentia-se atraído por Brisa e apenas por ela. Diverso dos demais frangos, conforme o costume. Já que sabemos que um galo não é macho de uma fêmea apenas. Não se contenta em namorar apenas uma.
Algum tempo depois daqueles dias e cairia uma chuvinha fina sobre a turma no pasto. Chuva estranha. Bem fraquinha, sabe. Com chuva e sol ao mesmo tempo, já viram? E Fernando e Brisa mal se protegeriam, recostados um ao outro, encorujados debaixo de uma pequena figueira. Achariam bonito o arco-íris para os lados da serra. Distraídos não perceberiam a chuva intensificar-se. Pelo soprar mais forte do vento Brisa recostar-se-ia ainda mais ao Fernando, que, eu diria até sem perceber, num gesto espontâneo esticaria uma asa abraçando-a, protegendo-a.
Olhando de longe a turma também acharia estranheza naquele ato de Fernando. Naquele cuidado. Nenhum frango ou galo jamais fizera aquilo naquele terreiro. Era parecido com o abraço das mães galinhas quando querem proteger seus pintinhos. Mas amor de mãe é amor de mãe, algo bem isolado. Viram que Fernando era mesmo diferente. As galinhas e as demais franguinhas adorariam aquele gesto. “Que amor”, cocoricaria a D. Carmona.
Ali, abraçadinho a Brisa, Fernando notaria que já se desbotava nele a saudade vívida e dolorida dos humanos. De comer o arroz cozido da mãe de Otávio. De assistir televisão. De correr atrás dos pardais no quintal. De andar de automóvel. De comer chocolate... Ah, que delícia que era chocolate. Quase tão bom quanto minhoca. Verdade que ainda notaria presente a saudade do amigo Otávio. Acertadamente desconfiaria que jamais se esqueceria dele. Mas eles se veriam muitas outras vezes. Seriam encontros alegres e festivos; mas disso Fernando ali ainda não saberia.
Ali, vendo seu reflexo numa poça d’água, de repente ele se surpreenderia por já se ver um galinho. Inspirado em algumas de suas aventuras com o Otávio, brincando com um lençol, brilhou-lhe na mente a ideia. A grande ideia. Pronto. Já sabia como aplicar uma lição no abusado gavião, que inclusive já teria causado uma baixa na turma, motivo de grande consternação a todos. Nisso, inclusive, salvaria um dos irmãos índios das garras do danado. Mas isso já é história para uma outra noite. Melhor dormirmos agora. Durma com os anjos.
Fernando, Um Franguinho Urbano.
Kirk Costa
CAPÍTULOS
1 - Como tudo começou.
2 - Mudanças.
3 - O novo quarto.
4 – As surpresas da primeira noite.
5 - Um novo dia.
6 – Que vacilo!
7 – Já noite outra vez.
8 – A investigação.
9 – A fuga.
10 – O vô desvenda o mistério.
11 - Novos tempos
4 comentarios
ibrenman
Profesor PlusHola Kirk.
En primer lugar, gracias por compartir tu historia con nosotros.
Me gustó tu historia, pero creo que podrías dividirla en capítulos, dependiendo de la edad a la que se pretende que el texto sea demasiado extenso. Y todavía hay que pensar en las ilustraciones que ocupan demasiado espacio en un libro.
Espero haber ayudado.
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dionikirk
Gracias por comentar, @ibrenman . No tenía ninguna intención de crear una gran historia. Estaba sucediendo. Pero mirando ahora, realmente una división en capítulos sería perfecta. ¡Ah! esta chica Fernando de la ciudad realmente existía. El origen estuvo en la forma en que narré. Me gustó esta broma. De escribir un cuento para niños. Un gran abrazo. Iglesia
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dionikirk
@ibrenman hecho.
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aurenice_lima
Muy interesante esta historia de "misterios".
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