Fragmentos de fuso horário II
por ROSA ACASSIA LUIZARI @rosa_luizari_1
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Introduza intervalos em tua rotina (recomenda o cansaço generalizado). Busca nos sábados e domingos o campo aberto para a coragem de estampar a cara ao sol. No sábado que dorme o ataque coletivos dos problemas e agitações. No domingo encontra águas de descanso e foge da presença dos teus adversários. (O cansaço perde a batalha e renova o corpo para o calendário que começará em breve). Que caia por terra os minutos de calamidades. Não terei medo. Não estarei desanimada. Encontro refúgio no poder de ressureição da carne cotidiana cujos pulmões respiram ausência de pesadelos. Transborda a paz acumulada nas bordas do corpo- grita o cansaço.
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No domingo, tenho livre arbítrio sobre o meu fuso horário. Transformo oito horas em cinco e assim começo o dia. Mais tempo na cama é o preparo do corpo para um despertar mais tranquilo e uma escrita mais produtiva. Sou dona do meu próprio sistema de produção. Por isso, deixo preparado o caderno com a caneta azul dentro. Não quero que escape a beleza do ordinário e o detalhe do eterno e do efêmero.
O cotidiano tem uma potência que eu nunca havia reparado. Ele me fez enxergar algo que olho todos os dias: a minha bolsa.
Todos os domingos, organizo a minha bolsa de valores para carregar o eterno e o efêmero durante a semana.
Ela abre a bolsa e se solidariza com o caos ali presente. Amuleto do signo de escorpião, a foto impressa da cidadã, a sacolinha de remédios, cartões de bancos, moedas. Há tempos não carrega o batom há muito escondido por trás da máscara antiviral. Todos os objetos se conectam a ela. Os ausentes a esperam em casa e os de dentro da bolsa brigam entre si na busca pela permanência. A briga termina quando ela procura algo e todos querem ser notados. Sorte do escolhido. Ou não. Ele não pensa em ser descartado, em ser ordinário. Se pudesse, compraria um cantinho eterno na bolsa de valores com as moedas que o rodeiam. Sente-se jogado à própria sorte. Na bolsa, encontram-se estranhamento e familiaridade. O telefone desconhecido e a fotografia 3x4, às vezes, caminham juntos. São unidos pelo caos e vem à tona quando a arrumação se faz necessária. O sentido dos objetos é privatizado pela dona da bolsa, sempre aos domingos.
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Domingo. Descanso? Em parte. a manhã foi dedicar-me aos cuidados de digitar um contrato de locação de imóvel a vencer em 10 de dezembro. Precisei digitar o contrato hoje. Nele, sou a digitadora e a testemunha da veracidade das informações ali escritas. Duas horas no computador foram suficientes para digitar o que consta em todos os contratos de locação e o que todos já sabem mas poucos cumprem. Amanhã irei ao espaço das formalidades e, à noite, provar que me especializei em Teoria do Texto e do Discurso.
Hoje pensei na massa do macarrão, pois a massa muscular não tem sido alvo de preocupação nesta fase da minha vida. Há dois anos, interessa-me a estética literária mais do que a estética do corpo físico (embora não dispense uma boa caminhada).
Pra fechar o dia, músicas da Antena 1 melhoram muito o ambiente do meu quarto e acompanham a leitura de cartas recebidas. Tenho uma coleção de cartões-postais que recebo de uma amiga de São Paulo. Releio os textos, revejo assinaturas e envelopes. Os selos conferem graça e estilo ao envelope. Utilizo alguns cartões para confeccionar um bullet journal. Ao lado do envelope, colo elementos associados à carta. Vejo meses guardados em transparência, régua para medir o tempo de espera da próxima carta, meses soltos aleatoriamente. Dias passados chegam como se fossem novidade no dia de hoje. A notícia do passado conversa comigo no presente e espera resposta no futuro. Quando a minha resposta chegar, talvez as informações já estejam desatualizadas. Penso que eu e a minha amiga vivemos em tempos diferentes. Os tempos verbais experimentados por nós duas tem sabores diferentes. Haveria uma relatividade que atravessa nosso tempo? Haveria um ponto de intercessão atravessando dois pontos diferentes?
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Doze de dezembro e a felicidade natural que ressurge a cada domingo reafirma-se agora. Sinto coisas boas chegando todas juntas: euforia, encantamento, segundos de afeto. A mensagem quase inesperada chega no domingo à tarde. A retomada de qualquer relacionamento vem dar uma quebra na rotina, mas nada que a altere definitivamente. (Pelo menos penso que não deve ser assim). Risquei do meu dicionário as palavras medo, tristeza e frustração há tempos. Não me darei ao trabalho de perder tudo o que conquistei em termos de autoestima e amor próprio no decorrer da minha autobiografia. Aquietei-me, observei e questionei tudo o que não me foi bom. Cumprida a tarefa de casa, nada de expectativas. Sou eu quem escolhe o melhor desta vida. Quero uma autobiografia confiante, com dose zero de sentimentalismo barato e falsa comiseração. Posso trocar a noite pelo dia, mas que nunca ressoe em mim o medo da eterna e plena agonia.
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O dezenove do último mês antes de janeiro foi cheio de autoconfiança. Celebro a felicidade em todos os dias que antecedem sábados e domingos para que ela perdure também aos finais de semana. (E perdura). Ao separar o joio do trigo durante a semana, sinto-me leve para curtir o domingo plenamente. Penso nas coisas boas que chegaram de segunda a sexta e sigo a jornada exitosa antes que a segunda recomece. Sigo uma rotina de autocuidados bem criteriosa, pois descobri que a raiz da plena beleza está em meu interior. O lado de fora é tão somente espelho. A foto 3x4 revela parte do corpo em plenitude. A foto 3x4 traz a cabeça. É um fragmento da razão e do equilíbrio. É objeto de autoanálise quando me convém. Quando não convém, colo na documentação da matrícula, no currículo e faço o pequeno retrato circular. Uma parte de mim ganha o mundo e a outra está pronta pra fazer um novo retrato.
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Início de 2022 e o quarto era pequeno e desenhado em poucos metros quadrados. Paredes amarelas antecipam a chegada da noite. Uma das paredes é invadida por um quadrado onde se localiza a janela, quase sempre fechada para evitar invasão de privacidade. A janela se diferencia das paredes apenas pelo cinza claro e assume quase a mesma função das paredes: guardar segredos que escapam ao diário e ao computador.
Às dezoito horas a ausência de ruídos confirma a chegada da noite. Ninguém nas ruas. Ouço apenas a música sertaneja no meio do quarteirão ao lado. É o boteco aberto aos desejos reprimidos de adultos que levam consigo crianças para que aprendam onde devem estar caso a vida seja ingrata com elas.
A lâmpada acesa facilita observar a escrivaninha ocupada pelo acúmulo de ideias defendidas pelo cânone e pela religiosidade formal. Agenda comprada em 2016 afetuosa com tudo que me aconteceu por seis anos (e ainda tenho espaço para o registro do improvável). A cabeceira da cama acumula as feminices cotidianas e os shampoos e protetor solar dividem espaço com meus óculos. Na sapateira guardo o óbvio e a televisão. O guarda roupas (este sim, abriga um mundo) revela um pouco de minha personalidade. Branco em exagero, rosa em tamanho médio e preto quase nada. As roupas trazem lembranças do que aconteceu ou deixou de acontecer. O que se concretizou na formatura de quinze anos ficou no vestido verde retratado na fotografia. O que deixou de ser estava no vestido rosa plissado e o que mudou em cada uma das peças de roupa que ainda tenho. O corpo que veste a roupa tamanho M continuou sendo como sempre foi, por muitos anos, resultado da alimentação equilibrada e nenhum desequilíbrio de qualquer ordem. Com o tempo, aprendi que a roupa veste o corpo, mas o que veste a alma está além de qualquer cor, tipo ou marca de roupa. Nunca precisei abrir mão de coisas materiais para compreender isso e nem foi a depressão que me mostrou esse caminho. Tive a oportunidade de ajudar quem experimentou a depressão da alma e vi na indicação do uso de roupas coloridas uma forma de abrandar a tristeza profunda. Estive com a mãe que perdeu o filho antes de ela saber do ocorrido. Nesse caso, não indiquei nenhuma cor de roupa. Para este caso, não existe. A mãe isolou-se dentro de casa pelo resto de seus dias. Não a vi mais. Nem aos sábados, nem aos domingos. Que cor de roupa estaria usando?
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Aos finais de semana, gosto de organizar listas. A de compras, mantenho a mesma para evitar a repetição do texto já pronto. A lista de afazeres eu não faço. A de sonhos não penso em deixar de fazer. (Não me convém que fiquem acumulados). Eles precisam de intervalos para acontecer. Meus itens favoritos aparecem um em cada linha:
maquiagem
livros
cadernos
canetas
roupas
joias.
preciso de muitas linhas para organizar o mundo à minha volta.
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Quinze de janeiro de 2022 e é complexo pensar em trabalho. O descanso é convidativo e as férias se tornam prioridade (desde que não atrapalhem minha escrita). Hoje é meu dia preferido na semana. O sábado não me deixa esquecer que devo estar linda por dentro e por fora e de bem comigo mesma, se pretendo reciprocidade em todos os tipos de relacionamento. É isso é verdade. Hoje estou especialmente feliz. A mudança brutal de rotina em janeiro me agrada muito. Faço a clássica limpeza para jogar fora as tralhas acumuladas ao longo de anos.. Dissertação de mestrado, livros dos anos 1980 e 1990, CDs com os clássicos do mesmo período, entre outras coisas. É uma questão de apego, pois sequer pensei em dedicar minhas horas àquele amontoado de papel (mas se alguém ameaça mexer em nossos guardados, desperta motivos para uma revolução). Quem nunca?
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No domingo que antecede o dia dezessete publiquei cartas. Foram escritas em julho e setembro do ano de 2021 e resolvi compartilhar com o público leitor a experiência. São cartas escritas para mim e para o outro. A escrita de uma carta exige afeto, mas também a adaptação a diferentes tempos cronológicos quando se escreve para si mesma. Estou aqui e preciso estar simultaneamente no passado e no dia de amanhã. Nessas horas penso na potência da língua. Só ela para me permitir ser muitas em uma só. Escrevi para mim em três tempos. Esse deslocamento do agora para a infância é um exercício de retorno ao já vivido. No entanto, o ato de deslocar-se para um tempo ainda não experimentado me parece um tanto desafiador. É como elaborar hipóteses às cegas, no limiar entre o certo e o duplamente incerto. O tempo futuro me leva a acreditar na ideia de duplamente incerto por dois motivos: não sei como será e nem se chegará, haja vista as circunstâncias vivenciadas pelas sociedades contemporâneas em função da crise gerada pela pandemia de Covid-19. Prefiro então pensar em um futuro não muito distante, como, por exemplo, o dia de amanhã que o calendário me mostra: segunda-feira, extensão da semana de festas de fim de ano. Há um certo tempo, pessoas podiam falar no dia de amanhã para referir-se ao futuro distante. Hoje, penso que a ideia de relatividade do tempo nos chama para uma conversa mais séria.
Referir-se ao outro em uma carta me parece mais simples: tenho um interlocutor, o assunto, o papel e a tinta. Bora escrever?
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DNA cheio de surpresas e alta resistência a angústias. Tenho paciência com minhas emoções. O processo de estar comigo mesma é acompanhado pelas canções de Tim Maia, Tina Turner e Eros Ramazotti. Nunca estou cansada ou alheia aos problemas. Dispenso o porco para guardar dinheiro e lembrancinha de final de ano, mas agradeço pelos bombons e livros antigos que ganhei de presente. Minha antecessora era alta, beleza diferenciada e temperamental. Defendia os que não tinham voz e mantinha a palavra diante do inimigo. Não se intimidava com nada. Era companheira, brincalhona e escorpiana nas horas vagas. Nunca esquentou a cabeça planejando vingança, pois sabia que a hora de cada um chega, mais cedo ou mais tarde. A mistura entre eu e ela: escorpianas, intensas e plenas. Sim: finais de semana me parecem os dias mais propícios para pensar em nossas mães. Quando estão aqui, não é preciso que pensemos nelas. Quando não estão, é mister que se faça todos os dias. Para evitar restos de não alegria, curto músicas dos anos 1990. Aos domingos gosto de reler Lisa Stansfield, Duran Duran, Bon Jovi. Parece que domino o tempo. Ausentam-se contratos de locação, telefonemas para a faculdade, boletos. Sinto a música a criar, aleatoriamente, memórias boas dos tempos de adolescência. Quero nem saber se são 13h37. Não troco meu som de domingo à tarde no quarto por quase nada. Boas músicas cabem no meu domingo. Às vezes me coloco a seguinte pergunta: o que cabe onde nada mais cabe?
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A rua. Minha rua não tem o esboço da tradição, mas é minha rua. Sou estrangeira de cinco anos para cá no lugar onde moro. Desde às cinco da manhã, vizinhos fechados em salas abafadas e escuras. Janelas fechadas para o mundo, roupas surradas. Uma das casas tem a voz calada pela morte do filho. A mulher é clara, olhos azuis, delgada. Nunca responde a chamados no portão ou chamadas telefônicas. Deslinkou-se do mundo. Quer copiar o filho. Enquanto aguarda na fila da autorização Suprema, raramente abre o portão e se alimenta de focos de luz solar. Fecha depressa a fresta pro mundo. Ignora-me. Logo antes da casa dela, encontra-se a tradicional fam(ilha). Marido, mulher, filhas hierarquicamente educadas. Fechados pro mundo. Não interessa se já não ouvem a voz da casa ao lado ou a minha, que mulher sozinha sou, e talvez, por isso mesmo, não precise ser ouvida. Interessa o bem comum da parte interna da casa deles. O de fora é terreno baldio. Aos domingos, tudo isso se repete. Apenas o pai vai à rua varrer o lodo da sarjeta. Varre a dele, a da mulher delgada, que considera idosa. Não varre a minha. A política da boa vizinhança termina no portão da casa alheia. É como se me deixasse um recado. Daqui pra frente, o lodo é teu. Não gosto de recolher o lodo da sarjeta alheia. No entanto, faço isso para mostrar a ele, à mulher dele, que não cumpriu o dever feminino de varrer a sarjeta, e às filhas hierarquicamente iguais à mãe, que sou uma boa vizinha. Varro o lodo até a esquina. Deixo amontoado, junto às folhas, o lodo que veio parar em frente à minha casa, a pele que habito. Vejo, no material varrido, a matéria fina e sórdida da rua toda, mas deixo lá, até que, no dia seguinte, o varredor de rua recolha o pacote de intrigas, angústias e contradições acumulados na semana e vistos por mim no mesmo lugar, todos os domingos.
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A pele que habito é discreta na cor e no tamanho. O espaço dela nunca foi adulterado e, se há ruínas, desconheço. (Se na visão do meu interlocutor a pele que habito era ruína, saiba que a casa onde moro abriga parte da minha estrada). Muitas vezes o eu foi reconstruído nesse espaço rarefeito. Aqui tenho controle da diástole expandida e da minha linha de produção. O corpo risonho mora em um quarto onde esconde o tédio nascido no olhar urbanizado. Nos dias diferentes do domingo moram a sístole pura. A mim cabe superar a contração e deixá-la no solo arredio de uma casa vazia, que não é a minha. Para evitar as contrações, eu leio a velha opressão e rasgo seus rascunhos. Interessam-me as referências bibliográficas utilizadas na linha da contramão, a fim de evitar o mesmo processo. Em minha casa acolho o que for preciso para meu próprio crescimento. Situações, circunstâncias, pessoas reais e da ficção, tudo para me preservar, assim como faz a Flávia. Ela renuncia a todo tipo de palavra pejorativa. Evita falar mal dos outros. Determinada, forte e autêntica, cuida de si mesma de forma competente.
[sinta-se acolhida]
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Muito emerge de nós aos domingos. Limpeza, vontade de preservar o próprio eu, trocar os móveis de lugar e organizá-los, escolher o que queremos que exista, visitar os espaços de consolidação da fé. Domingo reflito a respeito do sagrado e do profano, do alimento que colocarei à mesa e do filme a que vou assistir à tarde. Livros, CD, caneca, clips, A Sucessora, Química Geral e Reações Químicas, palavra escrita à carvão na parede, taco, New York city abriga o papel reciclado de amanhã, ausência de rachaduras na parede me circundam. Todos cômodos. Estou bem acomodada. Na ficção o Lucas me espera. Cinquenta voltas ao mundo, ama viajar. Distribui gratuitamente sorrisos. Atencioso. Paciência proporcional ao tamanho do coração. Preza a família, como verdadeiro representante do signo de câncer. Aprecia vinho e mulheres. Parte do tempo no Youtube a apreciar filmes românticos. Pretende conhecer Itália-Portugal em companhia de uma mulher que aprecie sua companhia e conversas interessantes.
[Seja bem-vindo]
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Quase desocupada e o pensamento se movimenta dessa forma: O (in)cômodo da casa nas rachaduras das paredes é coisa imbricada no espaço-tempo da poeira debaixo do tapete o movimento da poeira incomodado no escuro é coisa estagnada no pequeno espaço-tempo debaixo do quase nada o incômodo movimento nas rachaduras do escuro é coisa desajustada no espaço-tempo do quarto debaixo do meu sapato O espelho (re)alocado ao lado da cama escura coberta de meus segredos e flores de estatísticas no âmago dos medos o espaço compartilhado ao lado da escrivaninha devora objetos cores polvilhados de amores nas fotos da mesa fria espelho e escrivaninha adjacência e metalinguagem é isto que faço agora e o sonho (re)alocado não quero que vá embora.
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