O comedor de sopa
by Céu Dias @ceu_dias
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Outros títulos possíveis - O poeta devorador de sopa. Um poema na ponta da rádula. Sopa fria em poema quente.
O comedor de sopa
Eu e os meus irmãos já somos jovens adultos. Agora que estamos mais expostos aos riscos, temos que nos manter muito atentos por sermos particularmente lentos, surdos e vermos mal. Só que, por vezes, os perigos são absolutamente inesperados.
Naquele fim de tarde, encontrava-me com os meus irmãos a comer folhas, que pacientemente cortamos com a rádula, ou seja, a nossa língua, quando um carro parou junto ao muro. Abriram a porta do veículo, agitando o nosso arbusto. Nesse instante, eu acabara de subir ao topo de um ramo, que se prolongava para o lado da estrada, a fim de alcançar as folhinhas mais tenras e mais fáceis de mastigar. Reconheço que sou o mais preguiçoso dos meus irmãos no que toca a comer. Os pedaços de folhas enrolam-se na boca e nunca mais chegam ao estômago. Sabes como é, não é? Sim, eu também tenho cérebro, estômago, fígado, etc., como tu tens. Mas, retomando os factos, a porta foi então fechada e cortou a haste que caiu, comigo, no interior da viatura. O carro arrancou e fiquei muito assustado por não perceber o que estava a acontecer. Tinha que sair dali e voltar para junto dos meus irmãos. Algum tempo depois, o movimento cessou e a porta foi novamente aberta. Lá fora, o condutor estava a abrir o portão de uma garagem. Aproveitei a ocasião e, reunindo toda a minha coragem, deixei-me cair no passeio. Aterrei entre folhas secas e ralas. Estiquei os tentáculos e observei pernas e pés por todo o lado. Corria o risco de ser pisado. Era já noite, e decidi ficar ali sem me mexer, o que era muito fácil para mim, e, quando o passeio estivesse livre, havia de subir pela parede mais próxima e esconder-me num local isolado.
E assim aconteceu. Pude escolher a floreira mais recheada de plantas, que me oferecesse maior proteção e comida. Abriguei-me junto ao pé de uma planta que nunca tinha visto antes. As suas folhas são largas, compridas e recortadas em forma de costelas de gente. Por fim, mais calmo, que um caracol não se pode enervar, resolvi fechar-me em casa, ou seja, dentro da concha, para analisar melhor a minha situação. Mas de cinco em cinco minutos, lançava os olhos para fora, inquieto, pois mesmo sem audição, chegavam-me as vibrações de trinados de rouxinóis, os quec quec de patos, os gri gri dos grilos, os miados dos gatos e sabia que estava rodeado por predadores. Foi então que detetei a presença real de um inimigo a pairar junto da janela. Subi cautelosamente pelo vidro, mantendo-me à distância, e verifiquei que aquele inseto, um perigoso pirilampo, olhava fixamente para o interior da casa. Aproveitei para observar o que lá se passava e avistei um homem sentado, praticamente às escuras, em frente a um computador. E porque a curiosidade foi maior do que eu, aproximei-me do intruso e perguntei-lhe o que se passava. O pirilampo nem me olhou e, absorto, disse que estava apaixonado por uma pirilampo azul, que, contudo, não lhe ligava nenhuma. Noite após noite, tinha-lhe enviado sinais luminosos, a que ela respondeu de forma incompreensível. Reparei então na luz azul, proveniente do rato do computador que o homem manuseava. O pirilampo estava apaixonado pela luz do rato. Tanto melhor, pensei, muito aliviado, pois, para já, não me atacaria. Desci até à base da planta alta e fiquei a matutar toda a noite.
Na madrugada seguinte, quando me preparava para dormir, abriram a janela. Receoso, pus os olhos de fora da concha e deparei-me com o rosto de uma criança, que me pareceu muito carrancuda. Ela desapareceu, para reaparecer, logo de seguida. Estendeu-me uma colher que exalava um aroma fantástico. E se eu tenho um olfato apurado! Subi logo para a colher e comecei a sorver o líquido. Que maravilha, não precisava de mastigar. Aquilo era delicioso! A menina esboçou um pequeno sorriso e disse-me - “come tudo, caracol. Come a sopa toda!”. Claro está que não me fiz rogado e deixei a colher vazia. O meu estômago estava cheio e não precisava de me alimentar mais nesse dia. Estava de folga! Mas quem é que quer roer folhas todo o santo dia se puder comer sopa? “Como te chamas?” - perguntou ela. “Sou o Helix”. Respondi. E depois informei-a de que pertencia à família Helix Aspersa. Enfim, caracóis comuns de jardim. Ajeitando melhor os óculos sobre o nariz minúsculo, a menina declarou, com ar sério, que eu era de boas famílias. E acrescentou que também ela era de boas famílias. Podia tratá-la por Lady Flor. A mãe dizia que ela era doce, seca, forte e delicada como a flor de Hibisco desidratada que juntava ao iogurte do seu pequeno-almoço. Pensei novamente na sopa, que não precisava de roer. Era o alimento ideal. Mas voltando à questão do seu estatuto, perguntei-lhe de onde vinha o título Lady. Ela explicou-me que era a princesa daquela floreira, ou melhor, daquele palácio. E acrescentou - “Helix, és meu convidado e como tal quero garantir o teu conforto e segurança. Vou deixar junto de ti o meu cãozinho de guarda e doravante passas a comer a sopa nesta mesinha que retirei da casinha das bonecas”. Depositou os brinquedos sob a planta alta e continuou - “vês esta pedra? É um telemóvel que podes usar se estiveres aflito. Só eu o ouço, mesmo que esteja a dormir”. Encantado com semelhante hospitalidade, retorqui - “Só as mães conhecem bem os filhos. Agora percebo por que é que a tua mãe te chama Flor de Hibisco, Lady Flor!”. Ela, então, retomou a expressão carrancuda e percebi que estava a conter as lágrimas, tantas que, por certo, iriam encher as lentes dos óculos e escorrer pela cara abaixo. “Estou zangada com a minha família!” - declarou, assim que pôde, fazendo o beicinho. A Flor contou-me o que a desgostava. A mãe esperava um bebé, o seu irmão. Ela sabia muito bem fazer contas. Passando a ter dois filhos, os pais iam dividir o amor pelos dois, e a sua parte seria reduzida a metade. Já se imaginava um hibisco só com metade das pétalas. Subi até à folha mais alta, para me aproximar do seu rosto e poder olhá-la nos olhos, e disse-lhe - “pois olha, Lady Flor, o meu problema é o contrário do teu. Eu quero voltar para junto dos meus sessenta irmãos!”. A menina não foi egoísta e disse que entendia o meu problema, mesmo sendo oposto ao dela. Comecei a deslocar-me sobre a folha e, de forma espontânea, com o meu pé embebido no muco, fui escrevendo um poema sobre as saudades que sentia dos meus irmãos. Foi então que desceu do céu um rouxinol pronto para me devorar. Lady Flor deu um grito e o pássaro deteve-se na floreira por cima de nós. Esticou o pescoço e fez uso da sua boa visão para ler o que eu havia escrito. Em seguida trauteou uma melodia com o meu poema. Depois, com convicção, começou a cantar a canção. Juntaram-se, na percussão, um grilo e um pica-pau e, no baixo, um pato. No final da interpretação, ouviu-se uma forte ovação por parte de toda a bicharada em redor. Lady Flor gritava “Bravô, bravô”. O rouxinol, de peito inchado, agradeceu e aproximou-se de nós, declarando - “temos poeta. Eu não como poetas. Atenção, atenção, ninguém vai atacar este fantástico caracol poeta!”. Na verdade, eu não tinha ouvido música nenhuma, mas, pelas vibrações e pela reação da menina, percebi o que acontecera. Os quatro bichos deram um nome inglês ao seu quarteto - “Helix Bird Insect Band”. Estrangeirismos! Nunca imaginei o meu nome associado a tantos predadores. Pelos vistos, a poesia vale mais do que comida sensaborona como eu.
Percebi que acabara de viver um “momento lindo”, mas, apesar de mais aliviado, continuava com saudades dos meus manos e era o desejo de voltar à sua companhia que me punha a escrever. Lady Flor resumiu a nossa situação junto da assistência - “O Helix sente falta dos irmãos e eu queria continuar filha única”. Dito isto, a planta alta agitou-se vigorosamente apesar de não correr nenhuma aragem de vento. Uma das suas folhas mais jovens tocou na mão da menina e outra, mais abaixo e mais velha, dobrou-se sobre a primeira. Os nossos olhos pousaram sobre uma protuberância no dorso da folha jovem. Curioso como sou, deslizei sobre a planta até aquela elevação. Muito concentrado, circundei-a, fazendo uso de todos os meus sentidos. Por fim declarei, sem achar uma explicação - “Está alguma coisa a mexer-se lá dentro!”. Se não fossem as lentes dos óculos, os olhos de Lady Flor teriam saltado das órbitas, de tão arregalados que estavam. A custo sentenciou - “Essa folha vai ser mãe!”. A planta voltou a balançar. O caracol recolheu as vibrações e traduziu a mensagem da planta - “Sempre que nasce uma nova folha, o amor não se divide; não fica cada folha com menos amor. Pelo contrário, multiplica-se e cada folha dá e recebe muito mais amor”. Lady Flor tocou na planta e sentiu também a sua vibração, traduzindo-a nas suas palavras. A mensagem era longa - “A planta anseia pelo nascimento da folhinha. Como será ela? Vai ser perfeita e bonita? Vai crescer muito alto? Com qual das outras vai ser mais parecida? A planta sabe que, mesmo que as expetativas não se cumpram, hão-de amá-la com a mesma intensidade. Mas, por agora, vão ter que aguardar. A folhinha leva o seu tempo a desenvolver-se”. A menina pensou na mãe, com o seu irmão lá dentro, também à espera de ficar pronto para nascer. Como será o seu irmão? Será parecido com quem? Se ele estivesse ali, aprenderia com ela tudo o que há para saber sobre caracóis poetas, bandas esquisitas e plantas grávidas. Para suprir a ausência do irmão, tocou na protuberância da folha e sentiu, pela primeira vez, que o seu amor se tinha multiplicado. O caracol, muito comovido, pôs-se a escrever um novo poema, dedicado a todos os irmãos de todas as espécies, que, de imediato, foi musicado pelo rouxinol. Mais um sucesso!
Nisto, soou uma voz áspera que chamou pela menina - “já disse para vires almoçar! Que teimosa! Estou cheia de pressa para ir trabalhar”. Como a miúda não obedecesse, a voz prosseguiu - “Ó Ramiro, trata tu dela, que eu tenho mais que fazer”. Mas foi a avó quem se abeirou da janela e que com bons modos a conduziu para dentro, dizendo que a sopa já estava fria. Ela puxou-lhe pela saia, dizendo - “avó, o Helix come a sopa toda!”. Ao que a avó acrescentou, enquanto lhe compunha o rabicho do cabelo, que se haveria de enfiar no prato -”sim, querida, e tu vais fazer como ele”. Juntaram-se à mesa, onde o casal já terminava a refeição. A mulher dedilhava o telemóvel enquanto mastigava a fruta. O Ramiro levantou os olhos do tablet e lançou um olhar rápido às duas recém-chegadas, tragando o resto do café. Dirigindo-se à menina, disse-lhe - “Descarreguei este jogo para ti. Olha, tem aqui uns animais fantásticos. Vê bem, cada um é a mistura dos outros. As cores são muito vivas. Isto é que é imaginação. Tens que o jogar para ganhares imaginação. Passas demasiado tempo à janela sem fazeres nada de útil. Não te fartas? Toma lá isto”. E entregando-lhe o tablet, depositou-lhe um beijo rápido e saiu apressado. A menina abriu o jogo, mas a avó exigiu-lhe que comesse sem distrações daquele tipo. Perguntou-lhe quem era o Helix. A Flor explicou que se tratava de um caracol amigo. A avó, que crescera no campo, contou-lhe histórias da sua infância sobre burros teimosos, ovelhinhas cabriolas, flores doces que se mastigavam, cobras de morrer de susto. A menina só conhecia um caracol poeta e um quarteto musical. Da planta não disse nada, guardando esse segredo só para si. A avó perguntou-lhe - “queres regressar comigo?” A Flor acenou que não com a cabeça e as bochechas cheias de sopa.
Noite dentro, Lady Flor escapou-se da cama e foi até à janela. Assim que a abriu, o pirilampo entrou e foi pousar no rato, junto da luz azul. A menina tateou no escuro à procura da saliência da folha. Verificou que uma parte da nova folhinha já despontava de um rasgo no caule. Querendo ser prestável, despejou um copo de água no pé da planta para a regar. Atingido pelos chapiscos, dirigi logo os tentáculos para cima. A mão enorme de Lady Flor depositou um pratinho de sopa sobre a minha mesa, que de imediato me dispus a devorar, claro está, sem mastigar. Entretanto o pirilampo saiu furioso. A sua ex-amada era uma convencida que não se dignara a prestar-lhe a mínima atenção. O caracol e a menina sorriram juntos, confirmando que a pirilampo eletrónica nunca seria uma boa companheira.
O quarteto partiu, no dia seguinte, em digressão a fim de apresentar o seu novo trabalho. Deu-se o acaso de terem localizado a minha família, pois os meus irmãos perceberam que os poemas lhes diziam respeito, tendo interpelado o rouxinol sobre o meu paradeiro. O rouxinol trouxe-me a notícia. Mas Lady Flor ficou muito zangada e, digo-te já, ninguém a queira ter como inimiga. Bateu, com toda a força, os punhos sobre a floreira dizendo - “a família do caracol não interessa para nada! O Helix está muito melhor aqui comigo!”. E esbracejando, afugentou o rouxinol. Afundei-me, o mais fundo que pude, na minha carapaça castanha e procurei adormecer a fim de esquecer o que acabara de acontecer.
A avó chamou Lady Flor para almoçar. À mesa, os adultos comiam embrenhados nos dispositivos eletrónicos. Aproveitando a saída de Ramiro, ela ligou o tablet e iniciou o jogo que lhe fora destinado e cujo objetivo consistia em eliminar o máximo de animais fantásticos. Nesse dia, não regressou mais à janela. À noite, já a nova folha estava praticamente desdobrada, mostrando os seus recortes. Todos se afadigavam a descobrir parecenças. O rouxinol defendia que ela se assemelhava mais com as suas asas, que esticava e abria, tentando convencer os presentes. Perante tamanha algazarra, a menina largou o tablet e veio ver o que se passava. Eu continuava enfiado na casca. A avó também se juntou ao grupo e a menina entusiasmada, disse-lhe - “avó, a folhinha nova da planta grande já nasceu!”. A avó acariciou-lhe o cabelo e informou-a de que o seu irmão também já nascera. A menina abraçou-se à avó, dizendo que queria regressar com ela para casa. Não queria mais ficar com o tio Ramiro. Há um mês atrás, num momento de birra, ameaçara os pais de que ia fugir para casa de um casal sem filhos que a quisesse só a ela. Os pais condescenderam, propondo-lhe que fosse para a casa do tio Ramiro, que não tinha filhos. A avó acompanhá-la-ia. Se os seus progenitores, com a chegada do irmão, iam gostar, dela, metade do devido, os tios, no papel de pais, deixavam muito a desejar. Quem lhe valera, durante aquele tempo, fora a avó. Eram os seus pais e a avó quem melhor a compreendiam. “Estes meus tios não percebem nada de crianças! Tenho muitas saudades dos meus pais e do meu mano!” - concluiu Lady Flor. Enquanto isto, eu já ia esticando os tentáculos e logo comecei a subir pela floreira. Ao ver-me, ela declarou - ”avó, o Helix também tem que voltar para casa!”.
E foi assim que todos os meus amigos se envolveram no meu regresso. Fui cuidadosamente depositado, pelo rouxinol, entre as penas do dorso do pato. Ao meu lado, seguiam o grilo e o pirilampo. Gostei muito da viagem. Nunca mais esquecerei o reencontro com a minha família. Nunca mais esquecerei a Lady Flor. A experiência que vivi no seu palácio continuou a impelir-me para rabiscar poemas sempre que ficava só, a sós com a ausência daquela menina.
Num certo fim de tarde, encontrava-me, com os meus irmãos, a comer folhas, que pacientemente cortamos com a rádula, quando um carro parou junto ao muro e alguém saiu para abrir o portão grande. Eu acabara de subir ao topo de um ramo, que se prolongava para o lado da estrada, a fim de alcançar as folhinhas mimosas, mais fáceis de mastigar. Quem me dera voltar a comer sopa. Mesmo fria! Mas, retomando os factos, o dono do carro, que também era o proprietário do terreno onde habito, fechou a porta antes de retomar a marcha. Com isto, a haste, em que me encontrava, foi cortada e caiu dentro do carro, no colo de Lady Flor, que, ao ver-me, se abriu num raro e largo sorriso. Dirigindo-se ao irmão, demasiado pequeno ainda para perceber o mundo à sua volta, disse-lhe - “Olha e vê, já te tinha dito que o Helix não é fruto da minha imaginação! Tão pequenino e tem sempre um poema na ponta da rádula...Quando fores maior, vais comer a sopa toda como ele faz”.
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Maria do Céu Rodrigues, segundo as orientações, constantes do Curso, de Afonso Cruz e algumas sugestões de um sonho - Uma planta começa a apresentar uma protuberância que acompanha a gravidez recente de uma mulher. Esta tenta acautelar a planta, mudando-a para um local que lhe parece mais seguro. Durante esse percurso, sente os movimentos dentro da planta, preocupando-se com a fragilidade do invólucro vegetal onde se desenvolve algo vivo que ela não vê.
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ceu_dias
A possible poem by Helix
The wind runs the scale
Do, Re, Mi, Re, Mi, Fa, Sol
Among the stones lurk a thousand eyes
are the snail brothers
To the amazement of them all
Arrives, in flight, with the enemy
With the duck who plays the bass
And with the Woodpecker in the marimba
the sidereal light technician
Giant the shadow of the animals
And the claws of the nightingale
transverse flute voice
I'm back, beloved bros
rescued by nostalgia
I accidentally made a poem
That will leave you ruffled!
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